Parágrafos bem encadeados, ortografia impecável – e um travessão aqui ou ali. Com boa parte dos profissionais recorrendo a ferramentas de inteligência artificial (IA) generativa, como o ChatGPT, o Gemini ou o DeepSeek, para ganhar tempo e ser mais produtivo, alguns marcadores que indicam que um texto pode ter sido escrito por um robô começaram a entrar no radar de quem busca talentos. O travessão – uma pontuação mais ligada à oralidade e pouco frequente no vocabulário das redes – virou indício de que um texto pode não ser tão autoral quanto parece.
O debate ganhou as conversas no LinkedIn, rede social do mundo corporativo, onde especialistas e executivos passaram a questionar a avalanche de publicações rebuscadas, mas com pouco conteúdo autêntico. Também invadiu os processos seletivos, com cartas de apresentação e currículos “genéricos e polidos demais” que deixam uma pulga atrás da orelha dos recrutadores.
Segundo Bruno Barreto, especialista da consultoria de recrutamento Robert Half no Rio, os recrutadores já conseguem identificar sinais que levantam suspeitas de uma escrita automatizada. O indício mais claro é o estilo polido, genérico e “certinho”, afirma:
– Os documentos criados por IA, frequentemente, apresentam uma linguagem muito estruturada. Falta ali uma personalização.
O problema piora quando o candidato resolve adaptar o currículo com IA para “driblar” os sistemas, também automatizados, que fazem uma pré-triagem nos processos. Segundo Barreto, isso deixa os textos recheados de palavras-chave só para “dar match” com as exigências da vaga, repetitivos e artificiais:
– A IA tende a personalizar um conteúdo, mas sem o toque pessoal. Às vezes, esses sistemas ainda cometem alguns erros de contexto, querendo colocar palavras-chaves relacionadas à vaga, ou jargões técnicos.
Na Catho, a IA é uma aliada na triagem inicial dos currículos, mas apenas para identificar formações, experiências e competências dos candidatos, conta Patricia Suzuki, diretora de recursos humanos da Redarbor Brasil, grupo dono da plataforma. Filtros com base no modo de escrever são pouco usados pela Catho porque envolvem muitas nuances culturais e de linguagem. Para Patricia, se usada com bom senso, a IA generativa pode até contar pontos a favor:
– Demonstra praticidade, familiaridade com novas ferramentas e, em muitos casos, até uma preocupação em se apresentar bem, mas é importante que o conteúdo reflita quem a pessoa realmente é e que ela saiba sustentar o que escreveu ao longo do processo.
Com a IA, a etapa da entrevista se tornou a “hora da verdade” nos processos de seleção.
– Na sala de entrevista, confirmamos se o candidato possui a competência que diz, se fez o descrito naquela posição que ocupava. Mentiras ou exageros são vistos facilmente – diz Barreto, da Robert Half.
Mas, afinal, por que tantos travessões permeiam os currículos e cartas de apresentação feitos com IA? A resposta está na forma como os modelos da IA generativa são treinados, explica Adriano Carezzato, professor da Fundação Vanzolini. Eles são “alimentados” com livros, jornais, roteiros, artigos e outros textos mais formais, onde o travessão aparece com frequência.
– Esses modelos são probabilísticos e aprendem a usar esse recurso com frequência, mesmo em situações em que não deveriam, como num currículo – diz Carezzato, explicando que o robô não faz um julgamento claro sobre o contexto. – Sabemos que, mesmo em ambientes formais, o uso do travessão é pouco comum no português do Brasil, mas o modelo não tem essa noção.
Segundo Fabro Steibel, diretor-executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio), esses modelos só reconhecem e repetem padrões:
– O ChatGPT não foi à escola. Não sabe gramática nem sintaxe.
O problema pode estar no motivo pelo qual os profissionais lançam mão da IA, ou seja, a dificuldade com a expressão escrita. Atenta a isso, a professora de português Dalva Corrêa criou um curso de “escrita autêntica” para executivos e empreendedores que desejam escrever os próprios textos. Para ela, a preocupação com a presença ou não de IA nos currículos precisa ser mais profunda, pois apenas 10% da população entre 15 e 64 anos é plenamente proficiente em leitura, escrita e matemática básica, conforme o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf) de 2024.
– A maioria está no nível elementar, e essas pessoas estão trabalhando. Precisamos levar isso em consideração nos processos seletivos. Todo mundo usa IA. O problema não é como essa ferramenta está sendo usada – afirma Dalva, que defende o travessão, quando bem adaptado ao vocabulário e repertório de quem escreve, e relata casos de profissionais que deixaram de usá-lo por medo de serem confundidos com a IA. – Se você sempre usou travessão, por que vai parar agora?