Faltando pouco mais de um mês para o Círio de Nazaré 2024, além dos promesseiros e devotos prepararem-se para um dos momentos mais emblemáticos do calendário paraense, entre os itens mais simbólicos desse período estão as produções dos objetos de cera. Esses artigos carregam em suas formas simples e, por vezes, coloridas, muitas promessas de fé, histórias de cura e gratidão. Em fábricas e lojas tradicionais da cidade a produção está a todo vapor, movimentando uma tradição que remonta a mais de um século.
Na Casa Círio, que existe há mais de 130 anos na rua Doutor Malcher, no bairro Cidade Velha, a produção de objetos de cera começa a ganhar força logo após a Semana Santa, ainda em março, ajustando a demanda para ir antecipando alguns dos produtos que mais saem no período que antecede o Círio.
O estabelecimento administrado por Pedro Manoel Barbosa, de 62 anos, conta com sete funcionários na criação não apenas dos objetos de cera, como todos os itens relacionados a data. “Nós temos um cronograma para abastecer eventos religiosos durante o ano, mas começamos para o Círio, a preparação em larga escala, em junho; já o pico de produção é atingido, geralmente, em agosto, com uma produção diária de, em média, 100 peças”, explica Pedro, que aprendeu o ofício há aproximadamente 40 anos.
A elaboração conta com um repertório variado, desde órgãos e membros do corpo humano, a objetos como casa, carro e moto, representando os bens materiais; animais de estimação, como gato, cachorro, boi, vaca e carneiro também são alguns dos pedidos feitos com maior frequência. Entre os itens mais procurados, destacam-se as representações de cabeças e casas, objetos que simbolizam, respectivamente, a saúde ou cura direcionada à parte específica, e a realização do sonho da casa própria. “Esses são os campeões de vendas, reflexo de promessas íntimas e desejos profundos dos devotos”, afirma o proprietário.
Contudo, a produção não é simples. Pedro destaca que, ao longo dos anos, a demanda por objetos específicos pode variar, como aconteceu durante a pandemia de Covid-19, quando a procura por pulmões de cera aumentou significativamente. Ele avalia que a confecção dos artigos se adapta às necessidades dos promesseiros, independentemente de quão inusitados sejam os pedidos. Outro órgão bastante pedido é a mama. “Já produzimos de tudo, desde pulmões e órgãos genitais. A mama também tem sido muito procurada; então, atender a todos os pedidos, por mais peculiares que sejam, é nossa missão”, conta.
VÍNCULO
Na Fábrica São João, situada na rua Doutor Assis, também na Cidade Velha, o ritmo também é acelerado. Com 86 anos de tradição, a produção deste ano se intensificou desde junho, com destaque para peças como cabeças, corações, pulmões e pernas – tanto meia perna como inteira –, atendendo às demandas que só crescem à medida que o Círio se aproxima. “Hoje em dia, as peças do corpo humano são as mais solicitadas. Isso reflete muito as preocupações com a saúde e os relatos de fé que chegam até nós”, comenta a proprietária Ana Brahuna, de 66 anos.
Ela explica que o volume de produção é grande, e para isso ele conta com mais dois funcionários para o desenvolvimento das peças, principalmente as que mais precisam de cuidado ao finalizar, como braços e pernas, que podem ficar tortos se mal desenvolvidos. “Todo dia produzimos uma quantidade diferente, não há nada muito estabelecido, mas já produzimos mais de mil peças ao longo desses meses. O importante é que cada peça seja produzida com carinho e respeito, pois ela representa um vínculo sagrado entre o devoto e Nossa Senhora”, diz.
Os relatos de fé que chegam às mãos de Ana são tratados com reverência. Para ela, os itens não são apenas comerciais, mas a criação de acolhimento e espiritualidade. “Tenho muito cuidado com meus clientes, respeito cada promessa que é feita. No Círio, procuro estar presente para sentir essa energia de devoção”, ressalta Ana.
PROMESSAS
Para Ana, também, o impacto da pandemia ainda ressoa nas promessas, especialmente com a alta demanda por pulmões, símbolo de expressão de fé pela cura recebida. Ela relata que um cliente chegou a encomendar dezenas de pulmões para cada dia que sua sogra esteve internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). “Não me prendo muito nos números, mas esse pedido me marcou, pela quantidade e pela história envolvida”, comentou.
Os pedidos inusitados não são raros. Pedro lembra de uma senhora que, todos os anos, encomenda um galho de mandioca em cera, símbolo de uma promessa pessoal. Outro caso curioso envolveu um pedido por órgãos genitais, um pedido delicado e feito com muito recato pelo cliente. “Nós nunca deixamos ninguém na mão. Se o pedido for possível, a gente faz”, compartilha.