Organizado pela Igreja Católica, o Círio ultrapassa o calendário oficial da festa e se espalha por Belém em diversos modos de celebração. O povo, em sua autonomia, interpreta a festa mariana a partir do próprio repertório sócio-cultural e religioso, uma espécie de insubordinação simbólica aos ritos oficiais da festividade. Um exemplo disso é a participação de outras religiões nas dinâmicas das procissões. Umbandistas, Candomblecistas e Evangélicos congregam do mesmo espaço em uma demonstração de fé, comunhão e amor ao próximo.
A imagem de Nossa Senhora de Nazaré é um símbolo religioso carregado de múltiplos sentidos. Sendo assim, cada matriz religiosa a interpreta de acordo com a própria cosmologia, correlacionando a características similares de deuses da sua religião. Em sua origem, Maria representa uma figura materna, que, como mãe, acolhe todos os filhos sob o seu manto e os inclui em sua graça mesmo nas diferenças. Essa qualidade é o que torna possível que a celebração da Santa seja realizada por várias religiões.
Adeptos de religiões não-católicas sempre participaram das procissões do Círio de Nazaré de forma invisibilizada. No livro “Carnaval Devoto”, o antropólogo Isidoro Alves relata que, ainda na década de 1970, um membro da Guarda de Nazaré foi expulso da organização por ser de religião de matriz africana. De acordo com a historiadora Taissa Tavernard, professora do programa de pós-graduação em educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA), a festa devotada a Nossa Senhora ultrapassa o caráter religioso e se fixa na expressão identidade cultural e práticas sociais de um povo.
Desde 2012, a Assembleia de Deus Blindados no Senhor realiza o projeto “Eu+Você=Jesus – Água para quem tem sede”. A iniciativa, organizada a partir da orientação de Deus, inicia na noite de sábado, após a Trasladação, com apresentação de bandas durante toda a madrugada, a chamada vigília musical. Na manhã do segundo domingo de outubro, a igreja abre as portas em ajuda ao próximo com doação de água e café da manhã aos romeiros do Círio de Nazaré.
Aproximadamente 200 voluntários de várias igrejas evangélicas da Região Metropolitana de Belém e interior do estado se organizam desde agosto para atender os romeiros. Cultos, vigílias, consagrações, propósitos de oração, jejum e seminário servem de preparação para quem participa pela primeira vez do projeto. Nesses momentos, os voluntários recebem orientações sobre como servir e acomodar as pessoas, além das dinâmicas da distribuição de água e café, principalmente nos momentos de pico da procissão.
“Não faz sentido a única igreja evangélica de Belém, situada no caminho da procissão, fechar as portas por causa do Círio. Somos uma igreja desprovida de preconceito religioso e nossa missão é propagar o amor de Deus. É uma forma de demonstrar com nossas ações o que ministramos todos os dias, que é amar a Deus sobre todas as coisas e do todo o coração, e ao próximo, como a nós mesmos. É uma orientação divina, descrita no livro de Marcos 12:30-31”, afirma o pastor Zildomar Campelo, idealizador do projeto.
Durante a preparação, a igreja recebe doações de água, pães, café, frutas, sucos, além de ajuda financeira, oferta de tempo e talento para cozinhar, tudo o que possa auxiliar os irmãos católicos na caminhada de fé. De acordo com o pastor Zildomar, a ajuda ao próximo fortalece o “espírito voluntário de cuidado e amor”, atitudes que a igreja busca estimular entre os fiéis evangélicos. O projeto tem apoio do Arcebispo Metropolitano de Belém, Dom Alberto Taveira, e do Pastor Presidente da Assembleia de Deus em Belém, Samuel Câmara, servindo de referência de solidariedade a outras igrejas evangélicas ao redor do Brasil.
“É isso que a igreja busca: despertar o sentimento de compaixão e de amor por quem não se conhece. A Assembleia de Deus nutre respeito pelas pessoas que participam do Círio. E é por esse motivo que a igreja abre as portas para oferecer, como igreja, ajuda àqueles que precisam. Nós buscamos ser imagem e semelhança de Deus. Jesus estava aonde as pessoas estavam e, como seguidores de Cristo, não poderíamos estar em outro lugar nesta época do ano, reafirma o organizador.
AFRO-RELIGIOSOS
Alguns integrantes de religiões de matriz africana, Umbanda e Tambor de Mina, também se inserem na celebração à sua própria forma: dentro e fora dos terreiros. Para essas doutrinas, Nossa Senhora de Nazaré possui atributos semelhantes a orixá Oxum, já que ambas são tidas como senhoras das águas doces e estão ligadas à maternidade e proteção. Nos terreiros são realizadas festas e louvações a yabá (orixá feminina), que foi historicamente sincretizada com a santa católica; enquanto fora deles os filhos de santo prestam homenagens durante a passagem da imagem Peregrina.
“Os umbandistas e adeptos do tambor de mina, que prestam devoção santoral, participam de vários rituais do complexo litúrgico nazareno. Eles recebem a peregrinação da santa que antecede a festa, acompanham as procissões, e, no final da quadra nazarena, algumas casas tocam tambor para entidades africanas, como Sinhá Abê, Nevezuarina ou para Oxum. O Círio, para eles, também tem um desdobramento que acontece dentro dos terreiros”, explica a doutora em Antropologia, Taissa Tavernard.
Em contrapartida, a participação dos candomblecistas de diversas nações (nagô, jeje, ketu, angola) ocorre através da expressão artística e cultural, contribuindo para o aspecto mais profano da celebração. São eles os responsáveis, em sua maioria, pela organização do Auto do Círio, manifestação artístico-cultural que toma conta das ruas da Cidade Velha; além de estarem presentes durante a Festa da Chiquita, na praça da República. “Os candomblecistas, cuja identidade é marcada pela busca da africanidade, participam, sobretudo, do Auto do Círio, que, na minha visão, transformou-se em uma ‘procissão’ acompanhada e realizada por religiosos não cristãos”, afirma a historiadora.
Durante a realização desses eventos, “os povos da rua”, como Exus e Pombagiras, são chamados e referenciados para proteção do cortejo. “Durante o cortejo-procissão, é muito comum ver referências visuais a figuras dos Exus e Pombas-Giras. Um ritual que acontece no espaço da rua, precisa da presença do povo de rua. Alguns membros do candomblé Ketu, mais ligados ao movimento negro, vendem comidas religiosas e tocam tambores na praça da República, próximo ao Theatro da Paz, no mesmo momento em que acontece a Festa da Chiquita”, relata a discente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFPA.
Mais de 75 anos ligam a tradição da festa nazarena ao Templo Espírita de Umbanda Cabocla Yacira (T.E.U.C.Y). O respeito e devoção a Nossa Senhora iniciou com sacerdote Pai Airton Soeiro, que foi guarda da santa por muitos anos, sendo afastado após o conhecimento dos padres sobre ser umbandista. Hoje comandado por Mãe Yacira, o terreiro mantém a tradição de mais de meio século prestando homenagens durante a passagem da imagem Peregrina pela BR-316, na procissão do Traslado para Ananindeua-Marituba.
A preparação inicia na quinta-feira do Círio, quando os filhos de santos vão a casa de axé, vestidos de branco, para uma sessão de passe e cura. Ao final, a ritualística segue com louvores e preces à Maria e às correntes das águas de Oxum e Iemanjá para que sejam retiradas todas as mágoas, tristezas e rancores acumulados durante o ano, purificando o campo espiritual. Na sexta-feira, dia da procissão, cerca de 70 filhos se posicionam às margens da rodovia para prestar auxílio aos peregrinos com doação de água e alimentos, além de atendimento à saúde.
Ao rufar dos atabaques e ao som das cantigas em iorubá, os umbandistas saúdam a Virgem de Nazaré. “Com o coração transbordando de amor e fé, batemos nossos tambores, cantamos nossas cantigas para louvar e agradecer a mamãe Oxum pela água doce da vida e a Nossa Senhora de Nazaré por ter trazido ao mundo o grande mestre Jesus, que ensinou a poderosa força do amor. São duas senhoras distintas em suas histórias e crenças, porém idênticas quando o assunto é amor por seus filhos”, relata Ya Gedeunsu (mãe Rita Souza), yakekere Ilê Axé Oyá Egunitá – Manso Bando Keke Bisneta.
As homenagens e o cuidado com os irmãos de outras religiões é uma oportunidade importante para o povo do axé. “É uma oportunidade de mostrar à sociedade que o povo de axé é do bem, que somos irmãos, somos iguais e Nossa Senhora abre esse caminho para nós. Eu entendo o Círio como um grande evento de confraternização e aproveitamos disso para nos doar a nível de amor e de acolhimento dos romeiros. Fazer isso é da nossa essência, mas quando conseguimos sair dos muros do terreiro e mostrar um pouco do que vivemos no cotidiano, é maravilhoso e especial”, afirma a sacerdotisa.
O amor a Maria também é a motivação dos filhos de santo do Espaço Afro-Religioso Mãe Dinair – Terreiro São Sebastião e Toya Jarina. Localizado na avenida Augusto Montenegro, a casa de umbanda presta homenagens na passagem da Santa na Romaria dos Rodoviários, na manhã do sábado do Círio. Com chuva de papel picado eles saúdam a imagem Peregrina, ato simbólicos que reforçam a relação da casa com a grandeza da Virgem Maria. Para o zelador do terreiro, as homenagens marcam uma história de relação entre a imagem de Nossa Senhora de Nazaré e da Orixá Iemanjá.
“Nós temos esse lado do sincretismo religioso, em que acreditamos nos santos da igreja e também cultuamos os nossos orixás e encantados. Essa relação forte entre os santos católicos com as divindades da natureza é que faz a gente ter esse amor pelas festas dos santos católicos e a principal é a de Nossa Senhora de Nazaré. Na época da colonização do Brasil, os indígenas e negros escrvizados queriam culturar seus santos de origem, então usavam a imagem dos santos católicos para fazer essa relaççao. Então, a nossa ligação de amor com Nossa Senhora já é construída desde essa época”, conta Pai Elivaldo Santos de Oxalá.
No sábado de Trasladação, 150 filhos de santo reúnem no terreiro, paramentados, e seguem em peregrinação rumo à Basílica Santuário com o objetivo de acompanhar a procissão. Durante o trajeto, juntos, eles caminham cantando louvores, fazendo orações e pedindo intercessão da Virgem, assim como milhares de paraenses. “Os filhos vem das suas casas caminhando e partimos para a Basílica para acompanhar a procissão. Vamos rezando o terço, prestando homenagem a nossa mãe maior, que é Nossa Senhora de Nazaré”, finaliza Pai Elivaldo.