CRIATIVIDADE QUE PROTEGE

Entenda como o manto que veste a imagem de Nossa Senhora de Nazaré é produzido

O manto de Nossa Senhora de Nazaré é considerado o maior ícone do Círio de Nazaré

Stella Rocha, estlista. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.
Stella Rocha, estlista. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

O manto de Nossa Senhora de Nazaré é considerado o maior ícone do Círio de Nazaré. A vestimenta carrega grande poder simbólico no imaginário coletivo representando a importância religiosa de Maria que, na imagem de Nossa Senhora, é a Rainha da Amazônia. A apresentação do manto, realizada na quinta-feira que antecede as grandes procissões da festa mariana, marca um momento emocionante de consagração e reencontro da santa com os devotos paraenses. 

O manto era um tipo de vestimenta utilizada por reis e rainhas europeus durante a Idade Média que indicava a posição social da pessoa que o portava. Para a Igreja Católica, o manto carrega significados morais e espirituais e representa as virtudes cristãs. Ele simboliza a santidade de Maria, que, em sua humildade, aceita gerar o filho de Deus e, dessa forma, se torna o modelo de maternidade divina e Mãe da Igreja. Em Belém, esse símbolo se adequa à devoção do povo paraense, iniciada após o achado do Plácido. 

“A imagem de Maria é revestida com um manto que a legitima como Mãe e Rainha da Amazônia, título que foi confirmado politicamente na Assembleia Legislativa do Estado do Pará, com a Lei n. 4.371 de 15 de dezembro de 1971, que proclama Nossa Senhora de Nazaré como Patrona do Estado do Pará. Anualmente, a Santa recebe um manto novo para a procissão do Círio, que faz parte da indumentária da imagem”, afirma o pesquisador da devoção mariana em Belém, professor doutor José Maria Ramos. 

No livro “História do Círio e da Festa de Nazaré”, o escritor e jornalista Carlos Rocque revela que a imagem de Nossa Nossa Senhora, encontrada pelo caboclo Plácido, no igarapé Murutucu, em 1700, já vestia um manto de seda brilhante. Anos mais tarde, no século XX, a história de confecção da indumentária inicia com as irmãs da Congregação Filhas de Sant’Ana do Colégio Gentil Bittencourt. 

A tradição de produzir o maior símbolo da festa ficou sob responsabilidade da irmã Alexandra, que os confeccionou anualmente até seu falecimento, em 1973. Com a morte da freira, a responsabilidade foi atribuída à sua ajudante e ex-aluna, irmã Esther Paes França, que confeccionou 19 mantos bordados até 1992. Foi em meados da década de 1990 que os mantos se regionalizaram ao exibir elementos da religiosidade atrelados à cultura amazônica, segundo Carlos Rocque, que ocorreu devido a influência das promessas de doadores, que pediam por desenhos específicos nos mantos. 

A partir dos anos 2000, a indumentária da imagem peregrina passou a ser idealizada por desenhistas e estilistas de renome com inspiração no tema da festividade no intuito de evangelizar. “Hoje essa tarefa é realizada por artesãos e estilistas locais e devem ser inspirados no tema da festa, que este ano é “Perseverar na oração, com Maria, Mãe de Jesus”. A cerimônia de apresentação do manto é um dos momentos mais esperados da festa do Círio. O manto também é algo de domínio popular, pois os fiéis confeccionam seus próprios mantos para suas imagens”, diz o professor José Maria. 

CRIAÇÃO DO MANTO

Anualmente, os responsáveis pelo manto de Nossa Senhora de Nazaré são convidados por um casal de diretores da Diretoria da Festa de Nazaré (DFN) para pensar no desenho e confeccionar o símbolo mariano. Geralmente, são eleitos um desenhista e um estilista para produção do modelo em cores claras e que exaltem o tema e a liturgia utilizada durante a festividade. Com a  proposta realizada no início de cada ano, o produto final deve ser entregue com antecedência após aprovação dos responsáveis pela festa. 

MANTO 2023

A proposta do manto de 2023 surgiu ainda em 2018 através do artista visual Odair Mindelo e do estilista Jorge Bittencourt. Apresentado anos mais tarde à Diretoria da Festa de Nazaré, o desenho sofreu algumas adequações para abordar da melhor forma o tema do ano: “Maria, sinal de esperança para o povo de Deus em caminho”. Com a base pronta, as alterações foram feitas em cerca de 40 dias e contemplou símbolos que remetiam ao centenário da Basílica de Nazaré. 

Odair Mindelo, artista visual

O processo criativo foi permeado de desafios, sendo o maior deles a fusão de dois temas em um único desenho do manto. “Foram quase dois anos estudando corte, tamanho e outro símbolos que eu via nos mantos anteriores e que ouvia muito as pessoas falarem a respeito. Imagine que são mais de dois milhões de pessoas numa avenida querendo tocar no manto. Quantas pessoas não gostariam de dar a opinião sobre um dos maiores símbolos da festividade? Tive que manter sigilo por um bom tempo, em que o único diálogo que temos é com Nossa Senhora, não tem outro caminho para buscar essa inspiração”, relata Odair Mindelo. 

O manto é composto por ramificações que representam os mosaicos da Basílica Santuário de Nazaré. Há ainda, nas laterais, a flor de lótus, a mesma esculpida no teto da igreja, como símbolo da Trindade Divina. Na parte posterior, a Estrela da Manhã circunda o Imaculado Coração de Maria. Com doze pontas de cada lado, ele representa o Antigo e Novo Testamento, além das 24 horas de um dia. O manto é todo trabalhado em cristais incolores, que simbolizam a luz, e traz detalhes em cor verde, sinal de esperança. 

MANTO 2022

Com tema “Maria, Mãe e Mestra”, o manto “Rosa Mística”, de 2022, representa a singeleza, simplicidade e grandiosidade de Nossa Senhora de Nazaré. De acordo com a desenhista Aline Folha, o modelo aborda a relação de Maria na criação de Jesus, tendo como inspiração a passagem bíblica da Anunciação do Anjo Gabriel, momento em que a Virgem aceitou gerar e educar o Filho do Altíssimo, sendo considerada, posteriormente, a grande Mãe da Igreja Católica. 

“Eu pensei em falar desse momento em que Maria se torna mãe e que também se torna mestra educando Jesus e as pessoas ao redor dele. É um momento que ela vai ser uma figura acolhedora e, como mãe, escolhe passar por todas as situações ao lado do filho dela”, explica a aquarelista. 

Aline Folha, desenhista do manto 2022. Foto: Mauro Ângelo/ Diário do Pará.

Em cores suaves, entre tons de branco, rosa e verde, a doçura de Nossa Senhora é representada através da Rosa Mística, na parte posterior do manto, contornada por raios celestiais que despontam em doze estrelas, representando os doze apóstolos. Nas bordas, ao redor do manto, há a presença dos lírios, que simbolizam Deus Pai. No topo das costas da veste da imagem há bordado a imagem do Espírito Santo, em forma de pomba, que remete aos momentos da Anunciação e Coroação de Maria. 

Há um processo criativo extenso até a concepção do desenho oficial do manto do ano, iniciado no final de março de 2022. Para criá-lo, a desenhista recebeu um texto com a explicação sobre o tema e a forma com que a Igreja abordaria a temática. A partir da leitura, ela retirou as possíveis informações a serem incorporadas na peça, desenhada posteriormente. Firmada a ideia principal, iniciou-se a fase de pesquisa por elementos visuais no interior da Basílica de Nazaré. Nos mantos de 2016, 2017 e 2022, as flores foram as responsáveis por passar a mensagem principal da festividade. 

“Na minha criação, as flores vão contar as metáforas. Em 2016, eu utilizei lírios, em 2017 foi jasmim-estrela e rosas; e no de 2022 eu sentia que tinha que ter rosas. No último fui buscar referência na Basílica e uma moça chegou até mim e explicou os símbolos que tinham no interior. Quando chegamos na porta esquerda tinha um desenho da Rosa Mística e ao redor tinham outras rosas e lírios. Ela me disse que a rosa simboliza cada oração que oferecemos a Maria, já os lírios oferecemos a Deus, através do Pai-Nosso. Aí fechou a ideia do manto, eu queria que ele fosse um abraço de acolhimento do Pai e da Mãe”, contou Aline Folha. 

Definido o modelo, o desenho passou para as mãos da estilista Stella Rocha para o bordado da indumentária. Tendo início na idealização das cores, o processo de costura demora em média quatro meses, em regime exclusivo, e inclui a escolha e compra dos materiais, a costura dos materiais e finaliza apenas no dia da apresentação do manto para assembleia na Basílica Santuário de Nazaré. Para definir quais elementos seriam utilizados, a estilista passa por um processo criterioso de escolha dos materiais que causam impacto à primeira vista. 

Círio 2024: veja o descritivo do manto de Nossa Senhora de Nazaré

“Quando eu olho o desenho, idealizo, mais ou menos, as cores, vou a São Paulo, escolho pacientemente o material, só isso leva um a dois dias. Chegando em Belém, eu comecei a passar o desenho para o tecido e fiz uma amostra para mostrar ao casal diretor uma prévia de como vai ficar, se gostam das cores, da localização das pedras, para ver se aprovam a ideia. Se tiver algum ajuste a ser feito, eu faço e daí pra frente sigo o desenho”, explica a estilista. 

Para o manto “Rosa Mística” foram utilizadas pedrarias de alta qualidade em cores suaves: pedras de cristais swarovski, vidrilhos e miçangas, materiais próprios para o bordado a mão. A produção da estrutura de sustentação também é parte importante do trabalho, já que garante as condições de visibilidade dos elementos. O trabalho de confecção finaliza apenas no dia da apresentação do manto, quando a vestimenta é  colocada ao “corpo” da imagem para exibição pública na Basílica Santuário de Nazaré.

“Sempre tive o princípio de fazer em tons suaves. No bordado vão pedras de cristais swarovski brancas e rosas, vidrilhos, miçangas, que são próprios para bordar a mão, mas não costumo usar paetês. Já a armação é um segredo porque eu que comecei a fazer assim. Uso chapa de Raio-X, é um material que dá sustentação e arma melhor o manto. Mesmo pegando, o manto volta pro lugar e fica do jeito que queremos. Além disso, colocamos um forro por dentro para cobrir e uma entretela embaixo do bordado para dar firmeza”, revela a estilista.