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Minissérie “Adolescência” vira hit ao retratar abismo geracional a partir de crime

Essa montanha-russa narrativa acontece em tempo real, numa sequência de 60 minutos sem cortes, o que deixa o espectador tenso.

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Nos momentos iniciais de “Adolescência”, a polícia invade a casa de uma família ao nascer do dia e leva preso um menino de 13 anos, acusado de cometer um assassinato na noite anterior. Ele grita de desespero no furgão no caminho para a delegacia, onde é fichado, detido e interrogado, acompanhado do pai. Quando o episódio se aproxima do final, os investigadores mostram imagens granuladas, captadas por uma câmera de segurança, do garoto esfaqueando uma menina num estacionamento.

Essa montanha-russa narrativa acontece em tempo real, numa sequência de 60 minutos sem cortes, o que deixa o espectador tenso na maior parte do tempo. Ele descobre, junto com o pai do garoto, o crime em torno do qual gira a série da Netflix que já é considerada por alguns críticos como uma das melhores da história e vem sendo apontada como forte candidata a ganhar prêmios Emmy, o Oscar da televisão.

Os quatro episódios de cerca de uma hora cada, todos filmados em tomadas sem cortes, se debruçam sobre os motivos do crime e em como ele afeta a vida da família de Jamie, interpretado de forma magistral pelo adolescente Owen Cooper, em sua estreia na atuação. Seu pai, Eddie, vivido por Stephen Graham – que atuou nos longas “Snatch”, de 2000, e “Gangues de Nova York”, de 2002 – é um encanador, provedor de uma família normal de classe média, que de repente precisa lidar com algo impensável.

“Adolescência” não é baseado em uma história real, mas em várias. Em entrevista para o jornal britânico “The Guardian”, Graham, também um dos criadores do seriado, disse que pensou no argumento ao ver uma série de notícias sobre jovens garotos esfaqueando meninas na Inglaterra.

Dados do Ministério da Justiça britânico mostram que, de março de 2022 a março de 2023, 17,3% das 18.500 advertências e condenações feitas por posse de faca ou armas como navalhas e líquidos corrosivos se deram com infratores entre os 10 e os 17 anos, a faixa etária para a qual o seriado olha.

Mas o que deixa a trama da minissérie complexa não é o esfaqueamento em si, e sim a ausência de uma explicação maniqueísta para o crime. A família de Jamie não serve de bode expiatório.

“Eu não queria que o pai dele fosse um homem violento”, afirmou Graham ao Guardian. “Eu não queria que a mãe bebesse. Eu não queria que nosso filho fosse molestado pelo tio Tony. Eu queria remover todas essas possibilidades para que pensássemos: ‘Ah, é por isso que ele fez isso.’”

Na narrativa, os motivos têm a ver com a vida bastante tóxica que o garoto leva na internet. Jamie é exposto a altas doses de misoginia e machismo no Instagram, mas os investigadores não entendem isso, até a cena em que um estudante decifra para um deles os significados ocultos dos emojis das postagens, que são incompreensíveis para os adultos.

“A série joga luz num mundo que parece inacessível, que é o mundo dos adolescentes. Nesse sentido, os adolescentes sempre ajudam os mais velhos a enxergarem as coisas”, afirma o cineasta Esmir Filho, um dos principais diretores brasileiros a retratar a vida jovem em filmes e séries.

Outro tema de “Adolescência” é o bullying, que aparece tanto de maneira presencial, na escola de Jamie, quanto virtual. O garoto é chamado pelos seus pares de “incel”, os celibatários involuntários que odeiam mulheres e se reúnem em grupos na internet para destilar raiva e lamentar o declínio do macho na sociedade.

Se para as gerações pré-digitais as violências psicológicas infligidas por colegas de escola terminavam quando batia o sinal de ir para casa, na era das redes sociais isso mudou completamente.

“Hoje em dia não acaba, é 24 horas por dia, no WhatsApp, nas redes sociais. Essa violência se tornou muito mais agressiva, porque vou continuar te perseguindo em qualquer lugar em que você estiver e com muito mais pessoas. Consigo não te deixar quieto nem dentro do seu quarto”, afirma a educadora Carolina Delboni, que lança agora o livro “As Dores da Adolescência – Como Entender, Acolher e Cuidar”.

Série foi produzida com episódios de apenas uma tomada

Lançada no último dia 13 de março, “Adolescência” chegou à Netflix discretamente e se tornou um sucesso. A minissérie acompanha o dia a dia do jovem Jaime Miller, um garoto de 13 anos que vê sua vida virar de cabeça para baixo ao ser acusado de ter assassinado uma colega de escola.

Dividida em quatro episódios com cerca de uma hora cada, a produção tomou as redes e invadiu grupos de comunicação graças a suas discussões temáticas. Assuntos como as influências das plataformas digitais, o diálogo entre pais e filhos e a saúde mental da população jovem transformaram o seriado em um hit instantâneo.

Mas “Adolescência” também chamou muita atenção pela forma como foi produzida, e os bastidores divulgados pela Netflix se tornaram igualmente populares.

Os episódios da série foram rodados, cada, em um único plano-sequência, técnica do audiovisual que preserva ações e movimentos de câmera por muito tempo e não utiliza qualquer corte entre enquadramentos ou cenas. Isso gerou uma série de dúvidas sobre essa realização no set de filmagens.

Em uma postagem no Instagram, a plataforma explicou alguns conceitos técnicos e trouxe detalhes sobre as gravações. A publicação compara os planos sequência com “peças de teatro bem coreografadas”, uma vez que estes exigem a boa coordenação e o tempo certo entre todas as partes – seja a equipe técnica, o elenco principal, os figurantes ou a movimentação de objetos de cena.

Esse desafio foi particularmente trabalhoso no segundo episódio da série, que contou com um total de 320 adolescentes e 50 adultos coreografados. É nesse mesmo capítulo que a câmera precisou ser atravessada por uma janela, ao deixar uma escola, e ser conectada a um drone pouco depois, que permitiu levantar o equipamento e exibir um panorama superior da cidade.

Inclusive, por essas e outras cenas a equipe do seriado optou por gravar com um estabilizador, aparelho que facilitou a movimentação da câmera entre os espaços e suas personagens.

Diferente das produções teatrais, entretanto, onde qualquer desvio é visível em frente ao público, a gravação de um plano sequência permite erros, ainda que estes sejam bastante custosos. Por exigirem longas tomadas de gravação, cada tentativa toma muito tempo da rotina dos atores, amplia as horas de produção e pode acarretar no aumento de custos.

Ainda assim, um plano sequência bem executado demonstra amplo domínio técnico por parte da equipe. No caso de “Adolescência”, o conceito foi seguido à risca uma vez que ele reforça o suspense construído pela trama e seu impacto sobre o espectador.

Ao total, foram utilizadas quatro tomadas, uma para cada episódio. É claro que as gravações exigiram várias tentativas de captação até que o tudo funcionasse, e ao final foram selecionadas as melhores para cada capítulo. No segundo, por exemplo, apenas a 13ª tentativa foi escolhida como a melhor.

Entre as curiosidades, a Netflix ainda diz que o momento em que os policiais derrubam a porta da casa de Jamie, no primeiro episódio, exigiu o uso de 12 portas. O streaming também explica que a passagem do quarto episódio em que o ator Stephen Graham – também um dos criadores e roteiristas da atração – joga tinta em uma van exigiu uma tinta especial que permite ser lavada, já que a ação foi refeita algumas vezes.

Vale lembrar, ainda, que algumas produções tendem a realizar planos-sequência “falsos”. É o que acontece quando cortes invisíveis são utilizados para emendar tomadas diferentes e dar a impressão de estarmos vendo um material sem corte. Sua produção geralmente usa truques como a paralisação da câmera em pontos específicos de um ambiente. Este não foi o caso de “Adolescência”. Um exemplo recente é o filme de guerra “1917”, que venceu o Oscar de melhor fotografia em 2020.