GRANDE RIO

Prontos para encantar à Sapucaí: Grande Rio será o Pará no carnaval carioca

Tambor de Mina e da pajelança cabocla, Grande Rio será o Pará no carnaval carioca.

Esse é um momento de a gente ver um Pará grandioso, rico de ancestralidade, de cultura preta, cultura indígena e de resistência.”

Rafa Bqueer, artista visual e pesquisadora do enredo da escola.
Esse é um momento de a gente ver um Pará grandioso, rico de ancestralidade, de cultura preta, cultura indígena e de resistência.” Rafa Bqueer, artista visual e pesquisadora do enredo da escola.

Uma história da oralidade, transmitida de geração a geração nos terreiros de Tambor de Mina da Amazônia paraense, que começa com a chegada de três princesas turcas em busca de cura. Isso é o que será contado pela escola de samba Acadêmicos do Grande Rio, na Marquês de Sapucaí, na próxima terça-feira, 4, a partir das 00h50, com o enredo “Pororocas Parawaras – As águas dos meus encantos nas contas dos curimbós”.

Para tanto, a escola contará com diversos artistas paraenses na avenida, como Dona Onete e Fafá de Belém, representantes dos povos de terreiro e do carnaval paraense, além de várias famosas, artistas e celebridades que defenderão a escola. Entre elas, claro, a atriz Paolla Oliveira, em seu último ano no posto de rainha de bateria, a bailarina e ex-BBB paraense Alane Dias, a ex-BBB Isabelle Nogueira e a apresentadora Patrícia Poeta.

POROROCAS

De autoria dos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora, em parceria com a pesquisadora convidada Rafa Bqueer, o enredo propõe um mergulho nas águas amazônicas e uma jornada mística que mistura palácios, pajelanças, incensos, igarapés, encantarias e terreiros de Tambor de Mina. Tudo isso perfumado com ervas e conduzido pelo ritmo e pelas letras do carimbó.

“O enredo ‘Pororocas Parawaras’ basicamente vem do desejo de pesquisar as três princesas turcas, a relação delas com o Tambor de Mina e todas as vivências culturais que atravessam a mina, desde a pajelança cabocla, as relações com a floresta, pena e maracá, os encantados dos rios. A história popular que é contada é que as princesas turcas sofrem um naufrágio e chegam em terras brasileiras, ao Grão-Pará, e são recebidas pelo vodum Averequete, que é representado como espuma do mar. Ao serem recebidas se tornam princesas encantadas na Amazônia”, disse a paraense Rafa Bqueer, pesquisadora e artista visual, formada pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

AS BELAS TURCAS

As belas turcas são as mais queridas entidades da Mina paraense: Mariana, Jarina e Herondina.

“Mariana é arara cantadeira, Jarina é a jiboia ou a borboleta azul – essa narrativa tem variantes em terreiros. A nossa pesquisa foi toda feita a partir de uma perspectiva oral de trabalho de campo que fizemos em terreiros como o Dois Irmãos, da Mãe Eloísa, no Guamá, em Belém, em terreiros de mãe Fátima, no Marajó, no terreiro de Pajé Roxita, no Marajó também. Essas lideranças vão todas desfilar com a gente”, disse Rafa.

O enredo é dividido em cinco setores: o primeiro, que é a abertura do desfile, começa em meio à viagem, já no oceano, onde as princesas atravessaram o espelho do encante, a travessia encantada, como o samba de enredo canta.

O segundo setor é a chegada da energia ao Brasil. A escola vai mostrar o encontro dessa energia com a energia das civilizações extraordinárias que habitavam o solo parauara, como a civilização marajoara.

“A segunda alegoria são os igapós e o nascimento dos caruanas encantados dos igapós. A alegoria é toda inspirada na cerâmica marajoara, a partir de registros da viagem que fizemos”, adiantou Rafa.

O terceiro setor entra no coração da floresta e vai mostrar a aproximação das princesas com a cultura da Jurema Sagrada, e a conexão delas com outros seres encantados e fantásticos que habitam o imaginário ribeirinho das matas da Amazônia. Esse será o setor que trará boto, boiúna, entidades que também serão saudadas pela escola de Duque de Caxias.

Já no quarto setor, a escola vai mostrar a formação da Mina paraense. O desfile encerra mostrando como a história se transforma em carimbó.

DONA ONETE

“Para além dessa vivência afro e indígena cultural de terreiro, tínhamos uma dúvida de como encerrar esse desfile. E quando encontramos Dona Onete, a gente descobre que ela tem uma letra que fala das quatros contas. É uma letra que vimos um trecho na internet. Mas era uma música que ela nunca tinha gravado na vida. Ficamos muito emocionados, porque as quatro contas que a protegem são justamente Mariana, Herondina e Jarina, e a quarta conta é a cabocla Jurema, que na leitura do desfile será a floresta. Então, a Jurema abraça as três princesas turcas, que conhecem os rios da Amazônia, a floresta e são homenageadas nos carimbós”, adiantou Rafa.

CULTURA PARAENSE

A artista contou que o desfile termina com uma grande apoteose de homenagem à cultura popular paraense. “Porque somos carimbós, Auto do Círio, boi bumbá… é na cultura popular onde se perpetua a memória, o imaginário dessas três princesas, como canta Pinduca numa de suas mais famosas canções, que é ‘Dona Mariana’. Então, é na cultura popular que essas princesas são representadas e perpetuadas como memória viva. O desfile se dá dessa forma: vem dos mares, no abre-alas, encontra os rios da Amazônia e se ajurema na encantaria, adentra a mata, quando elas são cultuadas no Terreiro de Mina e, no final, homenageadas na cultura popular, com a grande homenagem à Dona Onete”, contou Rafa.

Fafá, Naieme e Dira abrem alas para os encantados

As cantoras Fafá de Belém e Naieme e a atriz Dira Paes vão desfilar no carro abre-alas da escola. As artistas paraenses irão representar as princesas turcas: Fafá de Belém será Mariana, a primogênita; Dira Paes interpretará Herondina, que se transforma em onça; e Naieme será Jarina, a irmã mais nova.

“A Herondina é a princesa turca que representa a força da onça. Fiquei muito feliz porque é uma maneira da gente traduzir o sincretismo que existe em torno das encantarias amazônicas e a encantaria parauara. Então, fiquei muito feliz de estar representando uma força tão potente, e acho que a fantasia vai traduzir muito dessa preciosidade que é a Turquia, das suas princesas, da sua qualidade de mundo antigo. Acho que o carro abre-alas vai trazer essa memória para chegar até o povo parauara”, disse Dira Paes.

A atriz esteve presente no ensaio técnico da escola e se emocionou. “Foi muito emocionante. Pude sentir esse carinho de perto do público, conversar. O ensaio técnico é um ensaio da alegria, exatamente desse sentimento que tem que tomar conta de quem está desfilando para poder trazer o público para dentro da avenida, e a gente cantar essa homenagem linda desse samba-enredo que é um hino! Ele vai se tornar um hino para o paraense, porque exalta a nossa terra, a nossa cultura e as nossas tradições”, apostou Dira.

Para Fafá, o convite para estar no carro abre-alas da escola é o reconhecimento do seu trabalho como artista há 50 anos. “Tudo que a gente faz na vida, fazemos com um objetivo. Desde que saí de Belém e coloquei o nome da cidade como meu sobrenome, há 50 anos, era capinando para plantar o nome do Pará, da música, da cultura, onde nós não éramos vistos. Então, o convite da Grande Rio me veio como um reconhecimento desses 50 anos levando o Pará para o mundo, e fiquei muito feliz”, falou Fafá.

Além de se sentir honrada com o convite, Fafá disse sentir-se também honrada por estar ao lado de outras duas artistas conterrâneas. “Estar do lado de Dira é uma honra imensa. E quando me perguntaram quem deveria ser a terceira pessoas, entendi que Naieme era a pessoa mais representativa: uma menina do Marajó, tem a mesmo traçado étnico da gente, que tem essa cara de caboclo, índio, eu, Dira, e ela como mais nova. Quando mostrei a fotografia para o Jayder [Soares, presidente de honra da Grande Rio], ele falou: ‘Só pode ser essa!’. Então, a gente vem com três caras muito paraenses, três gerações de artistas e de pessoas que abraçam esse Estado desde sempre em tudo que fazem. Onde nós estamos, sempre o Pará está junto”, destacou Fafá.

A cantora Naieme conhece bem a história que será contada na avenida, pois cresceu em Salvaterra, no Marajó, ouvindo a história das princesas turcas que atravessaram o portal que existiria no Estreito de Gibraltar, um portal da encantaria que vai desaguar na ilha do Marajó.

“E, por incrível que pareça, existe a corrente [marítima] Sul Equatorial que vem da África, passa pelo Estreito de Gibraltar e bate na esquina do Marajó. Então, nada é aleatório ou coincidência (risos). Adoro essas histórias e como vamos conseguindo correlacionar com coisas científicas, com fatos. E é muito bacana poder vivenciar isso na avenida, poder vivenciar a comunidade de Caxias abraçando as nossas histórias, essas minúcias das nossas narrativas”, disse Naieme.

A cantora lembrou, em seguida, que além da Grande Rio, em 1970, o carnavalesco Joãosinho Trinta já falou das encantarias, dos touros e dos Lençóis Maranhenses. “A encantaria do Tambor de Mina nasce no Maranhão e no Pará, enquanto é Grão-Pará, que era tudo junto, antes de separar. E aí, quando as princesas chegam, elas se encantam e viajam. Tem um filme bem legal do Luiz Arnaldo Campos [“A descoberta da Amazônia pelos turcos encantados”, PA/2009 que fala do caminho que elas fazem até chegar aos Lençóis, passando por Parintins, a ilha da magia. Tem todo um trançado de uma narrativa mágica que faz parte da minha vida, da minha cabeça lúdica de criança ouvindo essas histórias”, contou ela.

Naieme vai vivenciar tudo isso sendo Jarina, umas das protagonistas dessa narrativa, ao lado de pessoas que ela considera referências nas artes. “Vivenciar Jarina na avenida com Fafá e Dira, que são as minhas duas maiores referências da música e do cinema paraense e brasileiro, estou bem feliz. É um grande presente não só da Grande Rio como da espiritualidade, reconhecendo, abraçando, abençoando, pedindo permissão. E tem um terreiro incrível, o Dois Irmãos, no bairro do Guamá, que é o terreiro mais antigo [em funcionamento no Pará, com 135 anos]. Então, tem uma força muito bonita que está sendo cantada na avenida. Não só a encantaria, as nossas narrativas, mas a nossa cultura como um todo”, falou.

Naieme não é uma novata no Carnaval. No entanto, estar na Sapucaí também será realizar um sonho, disse a cantora. “Quantas vezes passei assistindo ao Carnaval na televisão, a vida inteira, e estou aqui desfilando. E quantas vezes desejei isso e achei que era muito distante, impossível. E não é. Quero ver mais nossos artistas, nosso povo na avenida, nossas histórias cada vez mais. Temos tantas escolas incríveis, passei por tantas escolas em Belém, Bole-Bole, Deixa Falar, Quem São Eles, Embaixada do Império Pedreirense. Ano passado fiz o enredo da Acadêmicos da Pedreira com o meu pai, Alfredo Reis. Ficamos em segundo lugar. Desde os 17 anos, eu desfilo. E desde criança estou em bailinho, em concurso de fantasia. Meus avós são do Quem São Eles, meu pai fez enredo para muitas escolas, foi um dos fundadores do Piratas da Batucada. Então, o samba existe na minha vida. Quando chego aqui, não fico deslumbrada. Sei de onde venho e sei o que está atrás do glamour: as pessoas lutando, inclusive eu, para chegar nesses lugares e furar a bolha”.