DESPEDIDA

Velório de Mestre Damasceno reúne homenagens à cultura marajoara

Neto de indígena e descendente de escravizados, Mestre Damasceno transformou as tradições do Marajó em música, poesia e festa popular, mesmo após perder a visão aos 19 anos.

Neto de indígena e descendente de escravizados, Mestre Damasceno transformou as tradições do Marajó em música, poesia e festa popular, mesmo após perder a visão aos 19 anos.
Dona Onete se despede do amigo. Foto: Ricardo Amanajás

Damasceno Gregório dos Santos, o Mestre Damasceno, símbolo da cultura marajoara, faleceu na madrugada desta terça-feira, 26, no Dia Municipal do Carimbó, aos 71 anos. Seu corpo está sendo velado desde a tarde de ontem, no Museu de Arte do Estado, e segue nesta manhã, às 5h, para o Marajó, onde será sepultado.

“Mestre fez a passagem hoje de madrugada, às 1h26 da manhã. Era um paciente oncológico que estava na UTI desde o dia 6 de agosto, com pneumonia grave e vinha nessa luta e, infelizmente, não resistiu. Teve uma parada e não conseguiu voltar por conta dessa pneumonia”, disse Guto Nunes, produtor do Mestre Damasceno, que acompanha a obra do artista há duas décadas.

O mestre estava hospitalizado em Belém desde 22 de junho, após ser diagnosticado com câncer em estado de metástase no pulmão, fígado e rins, primeiro no Hospital Jean Bitar e, depois, no Hospital Ophir Loyola, onde estava na Unidade de Terapia Intensiva, tratando um quadro de pneumonia e insuficiência renal.

Nascido em 1954, na Comunidade Quilombola do Salvá, em Salvaterra, Damasceno construiu uma trajetória de mais de cinco décadas dedicadas à valorização das tradições culturais do Marajó. Neto de indígena e descendente de homem negro escravizado, transformou em arte a memória de seus ancestrais. Mesmo após perder a visão, aos 19 anos, reinventou sua vida pela música, poesia oral e festas populares.

A 28ª Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes, realizada este mês, escolheu o mestre como artista homenageado, levando aos corredores do Hangar um cortejo do Búfalo-Bumbá, um festival cultural popular da ilha do Marajó, que celebra a história e a cultura local por meio da dança, música e teatro. Criada por Damasceno, é uma variação do tradicional Bumba-meu-Boi, mas com uma identidade e simbologia próprias, enraizadas na realidade marajoara.

Como reconhecimento por sua trajetória dedicada à música e à valorização das tradições marajoaras, Damasceno também foi homenageado, no mês de maio, com a Ordem do Mérito Cultural (OMC) — a mais alta condecoração pública concedida pelo Ministério da Cultura. A honraria, instituída pela Lei nº 8.313, de 1991, reconhece personalidades e instituições que contribuem de forma significativa para a cultura brasileira. A cerimônia oficial ocorreu no Palácio Gustavo Capanema, no centro do Rio de Janeiro, com a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da ministra da Cultura, Margareth Menezes.

Antes disso, Damasceno já tinha sido reconhecido com o Prêmio Mestre da Cultura Popular, pela Fundação Cultural do Pará, em 2015, e como mestre do carimbó, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-Iphan em 2017. Ele também teve sua obra destacada como patrimônio cultural do Pará, em lei aprovada na Assembleia Legislativa do Estado em 2023 (Lei n° 10.141).

“Um mestre da cultura popular da tradição oral que pôde vivenciar o que ele vivenciou, estar presente nos lugares em que ele foi homenageado, receber em mão todas as graças, os prêmios, os louvores de reconhecimento ao seu trabalho, ao seu significado, à sua importância. Mestre Damasceno rompeu barreiras e chegou em lugares inimagináveis a uma pessoa preta, quilombola, da oralidade, como por exemplo, assumir uma cadeira como um membro fundador da Academia Marajoara de Letras, onde normalmente estaria excluído de todo um processo. Este ano foi homenageado na Feira do Livro, a Secult, muito sensível, faz esse convite a ele”, disse Guto, que representou o mestre, já hospitalizado, durante a cerimônia de abertura do evento.

O produtor lembrou também que o artista entrou na Marquês de Sapucaí duas vezes, participando com destaque do carnaval carioca. Em 2023, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Paraíso do Tuiuti levou para a avenida o tema “O Mogangueiro da cara preta”, que contou a história da chegada dos búfalos da Índia na Ilha do Marajó. E parte deste enredo consistiu na homenagem ao Mestre Damasceno. No carnaval deste ano, Damasceno foi um dos compositores do samba “A mina é cocoriô!”, no enredo que destacou os encantados amazônicos e o Tambor de Mina.

“Ter entrado duas vezes no maior palco da cultura popular do nosso planeta, que é a Marquês de Sapucaí, uma vez sendo homenageado, e a outra como compositor de um samba belíssimo, que sabemos que poderia ter sido campeão, mas conseguiu o título de vice-campeã para a Grande Rio… ele voltou ainda e recebeu das mãos do presidente Lula a maior comenda que uma pessoa no nosso território brasileiro pode receber, a insígnia da Ordem do Mérito Cultural. Isso é muito importante, e Mestre Damasceno pôde vivenciar tudo isso”, destacou o produtor.