Passagens marcantes de nossas vidas ficam guardadas em lugares especiais, os chamados escaninhos da alma ou aquilo que os cartesianos gostam de eleger como memória seletiva. Quando o Botafogo foi campeão carioca em 1989, ano do nascimento de meu filho Pedro, acompanhei o jogo da redação da TV com o coração na mão. A euforia me levou a festejar na Doca com os irmãos de Estrela Solitária.
Em 1995, quando Túlio, Sergio Manuel & Donizete ganharam o Brasileiro, a festa se estendeu ao Cosanostra, sempre intensamente etílica. Finalmente, neste sábado iluminado do ano da graça de 2024, o Glorioso conquistou a América e precisei de algum tempo para acreditar nos fatos, atordoado e feliz. Afinal, o Botafogo está comigo há seis décadas.
Para facilitar a compreensão seria necessário fazer um tutorial do que é ser botafoguense. Segundo o mestre Armando Nogueira, o torcedor do Botafogo é um predestinado, escolhido pela Estrela que nos conduz. Por via dessa conjunção estelar, somos erráticos, imprevisíveis, diferentes.
Duvidamos de nossas possibilidades mesmo que todas as evidências indiquem o contrário. Somos sempre os menos otimistas – e até nos orgulhamos disso. Por essa razão, sofremos o diabo com a derrocada de 2023, embora no fundo já soubéssemos que tudo poderia dar errado.
Desta vez, as convicções eram mais fortes, assentadas na óbvia força técnica e coletiva do time dirigido por Artur Jorge. Não havia dúvida que, pela lógica, a final da Libertadores pendia mais para o lado de cá. Ocorre que, como a cumprir o script redigido por algum anjo sacana, as coisas começaram muito mal, da pior forma possível.
Uma expulsão logo aos 29 segundos é algo surreal até para os padrões do Botafogo. E logo Gregore, nosso pitbull de estimação, encarregado de trancar os portões e proteger o cofre. O pontapé veio carregado daquela dose imponderável de drama que precede desgraças.
Parei de assistir por algum tempo. Busquei coisas para entreter a mente. Um bangue-bangue na TV, um rock dos Ramones, uma passada na saga de Mário Conte, o detetive cubano de Padura. Nada, porém, capaz de conter a ansiedade. Ergui algumas orações e voltei à refrega.
Minutos depois, gol de Luiz Henrique. Não poderia vir em melhor momento. De repente, outro gol, por ação direta do camisa 7, legítimo representante de Mané Garrincha no Monumental. Pênalti cobrado com fúria por Alex Telles, e 2 a 0.
Tudo caminhava bem, bem demais. Perigo, perigo. Logo aos 2 minutos do tempo final, gol atleticano e todas aquelas premissas nefastas voltam a atormentar. Uma bola indefensável cabeceada pelo baixinho Vargas.
De cara, o jogo volta a ficar aberto e imprevisível. O Atlético aumenta a pressão, nossos laterais dão sinais de esgotamento com a insistência de Hulk em recolocar o time dele na disputa. Almada e Savarino fazem o jogo girar, mas o risco é permanente.
E aí cabe destacar o quanto Artur Jorge foi corajoso ao manter o time agressivo e crente na vitória ao invés de cair na roubada de fechar o meio e abandonar o ataque. Manteve os quatro mais ofensivos – Luiz Henrique, Almada, Savarino e Igor – na certeza de que o título só viria dessa forma.
Acertou em cheio. Não poderia correr o risco de ir para a prorrogação com 10 jogadores. Artur é um técnico como há tempos o Botafogo não tinha, lembra João Saldanha. Forte razão do êxito desse time, sem dúvida.
Por uma dessas coincidências absurdamente botafoguenses, Junior Santos, artilheiro e herói da campanha, entra no jogo para botar sua assinatura na taça. Dribla dois atleticanos com um quê de Ronaldo Fenômeno e avança até a área, perseverante e indomável.
O passe para Matheus foi interceptado por um zagueiro, a bola então se oferece ao goleador, que a despacha para o fundo do barbante. A história da grande final da América é finalizada com esmero pelo roteirista maluco.
Os torcedores de times mais acostumados a vitórias certamente se angustiam também em partidas finais, mas ou têm mais casca ou talvez apenas disfarcem melhor. Por outro lado, a carência de conquistas importantes nas últimas décadas conspira em nosso favor.
Ao contrário dos que acham que sofrer é com a gente, perseverar é o nosso verbo definidor. Duvidamos de quase tudo, mas sempre acreditamos também. Conflitos gigantescos, só possíveis em corações apaixonados.
Ao mesmo tempo, como ocorre com aqueles que pouco têm, nós sabemos o exato valor daquilo que conquistamos. Por isso, todos os títulos obtidos na era moderna – poucos, é verdade – são importantes, inesquecíveis e preciosos demais para todo botafoguense.
Enfim, é tempo de Botafogo!
Alguém disse na TV que é preciso ressignificar aquela frase-sentença “há coisas que só acontecem com o Botafogo”. A partir de agora, é justo dizer que há coisas que só o Botafogo faz, como vencer uma Libertadores vindo da pré-Libertadores.
Foi a Libertadores mais épica de todas. Somos os legítimos campeões da América, com direito a disputar dois mundiais. E podemos fechar o ano com mais uma taça, mas isso é assunto para outra resenha.
(Ainda preciso acordar deste sonho delirante…)
Obs.: Sonhava tanto com o dia em que escreveria linhas como estas, mas a realidade sempre trazia a descrença que habita a alma alvinegra. Desde os 10 anos, ainda em Baião, tempos de Jairzinho e Gerson, bolava parágrafos inspirados, citações geniais, frases buriladas para quando chegasse a hora. Mas, quando a história finalmente se materializa à nossa frente, sai o texto que o coração dita. E está tudo bem.