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Com racismo não tem jogo! O futebol precisa se livrar do preconceito

Nildo Lima

A grande repercussão dos ataques racistas sofridos, na Espanha, pelo atacante Vinícius Júnior, durante uma partida do Real Madrid, clube do craque brasileiro, contra o Valencia, está servindo para mostrar o quanto são necessárias, hoje, campanhas de conscientização nos meios esportivos. Não se trata de algo destinado a combater e punir apenas o preconceito de cor e raça especificamente no futebol. Especialistas afirmam que as ações devem ir além, englobando, também, a luta contra o machismo, a homofobia, a xenofobia, entre outras discriminações, dentro dos mais diversos esportes, com uma radicalização ainda maior.

Desde que tais preconceitos passaram a ser coibidos nos âmbito das práticas esportivas, em razão de campanhas desencadeadas por entidades ligadas ou não ao esporte, segundo os estudiosos do assunto, houve uma significativa evolução. Mas, de acordo com os mesmos entendidos na questão, ainda há muito a se fazer para que a prática abusiva seja banida do esporte. Um dos pontos a serem melhorados, na avaliação de muita gente, inclusive do presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ednaldo Rodrigues, é preciso um rigor maior na punição aos praticantes de atos discriminatórios no futebol.

Em encontros com o presidente da Fifa, Gianni Infantino, e em documentos enviados à entidade mundial, Rodrigues tem cobrado uma ação mais enérgica contra ações racistas nos estádios. O dirigente também tem cobrado dos juristas, leis mais duras contra a ação criminosa. “O racismo e a violência precisam ser combatidos com firmeza e veemência”, afirma. A posição de Rodrigues é encampada por muitas outras pessoas frequentadoras ou não de espaços esportivos, dentro e fora do Brasil, inclusive na Espanha, onde vozes se levantaram em protesto à atitude de torcedores do Valencia.

Mesmo havendo necessidade de um aperfeiçoamento do combate a ações discriminatórias nos meios esportivos, como afirmam os especialistas, é fácil perceber que, hoje, os espaços destinados à prática das atividades, já não possuem a mesma atmosfera de épocas passadas. Há tempo que os locais deixaram de ser ambiente onde tudo era permitido. Em linguagem popular, uma “casa de mãe Joana”, na qual tudo era permitido dentro da maior naturalidade. Do palavrão inofensivo aos ataques à dignidade humana. Algo que sinaliza para mudanças mais profundas no futuro. Que assim seja! O esporte e a civilidade agradecem.

Alejandro Falabelo vê avanços no combate ao racismo, mas ainda há muito a fazer – Foto: Arquivo Pessoal

Legislação forte deve ser aliada da mudança de mentalidade

O advogado Alejandro Falabelo, de 32 anos, com atuação no Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), vê avanço no combate ao racismo e outras práticas discriminatórias dentro da área esportiva e cultural no Brasil. Ele avalia como positivos os passos dados pela legislação do país no combate a este tipo de crime. “A legislação brasileira já foi muito branda. Ultimamente ela tem avançado no sentido de tratar com mais rigor as ocorrências racistas”, afirma o advogado, que há cinco anos presta seus serviços ao Cedenpa na condição de militante da instituição.

Mas, na visão de Falabelo, existem dificuldades que precisam ser superadas para que a legislação seja efetivamente cumprida. Uma delas diz respeito a uma maior habilidade no que tange à ação dos operadores sobre o tema. “A última legislação proibiu, por exemplo, o acordo de não persecução penal em caso de racismo. No entanto, a gente continua vendo o Ministério Público do Pará (MP/PA) propondo acordo de não persecução penal em caso de racismo ou, em outras situações, o próprio Ministério Público desqualificando casos de racismo para pré-injúria racial, na qual a pena é menor”, acusa.

O comportamento de integrantes do MP/PA, na opinião do advogado, acaba afrontando e diminuindo o poder de ação jurídica. “Isso não está na legislação. Então, a legislação por si só acaba não sendo um remédio adequado por si só. Existe toda uma questão do racismo estrutural por parte desses operadores do direito”, aponta. “Isso tem sido um entrave muito grande”, confia o advogado, indo além em suas críticas. “Ultimamente ocorreram avanços significativos no combate ao racismo de forma legal. Mas não basta criar leis. É preciso qualificar os operadores dessas leis”, arremata.

MINISTÉRIO PÚBLICO – Para o promotor público, Nilton Gurjão, 57 anos, a legislação brasileira de combate ao racismo e outros tipos de preconceito é adequada. Segundo ele, o arcabouço jurídico nacional é superior ao adotado por muitos países europeus “até por uma questão histórica”. “Na Espanha, por exemplo, não temos o que possuímos aqui em termos de leis especificas de combate a discriminação”, compara. “Isso acontece pelo fato de termos sido um país colonizado, enquanto a Espanha tem uma história colonizadora”, afirma Gurjão, cujas atividades profissionais se dão no Ministério Público do Pará (MP/PA).

O promotor admite, porém, que o conjunto de leis brasileiras relativas à questão ainda não é o ideal. “Mas se compararmos a nossa legislação a da Europa, com toda a certeza, a nossa é bem superior”, confia. O promotor ressalta que até mesmo o protocolo da Fifa referente ao tema “é bastante frouxo” em comparação com o que temos no Brasil. O fato de o país ter sido dirigido nos quatro anos passados por um presidente declaradamente de direita, alheio a casos dessa natureza, não chegou a interferir em nossa legislação. “Muito ao contrário. O Supremo Tribunal Federal (STF) só ratificou a aplicação das leis relativas à questão”, diz Gurjão.

O promotor vai além, lembrando que as leis de combate ao preconceito das mais diversas formas foram criadas anteriormente ao governo de Jair Bolsonaro e não sofreram mudanças durante o período de gestão do ex-presidente. “As leis continuaram sendo as mesmas e aplicadas pela justiça durante esse período”, ressalta o promotor.

Grupos de torcedores fizeram protesto no Consulado da Espanha em Belém e pregam debate crítico sobre essas situações – Foto: Divulgação

Clubes, federação e movimentos antifascitas atuam no futebol paraense para tornar o meio esportivo mais inclusivo e democrático

Os principais clubes do futebol paraense, mais incisivamente Clube do Remo e Paysandu, e a Federação Paraense de Futebol (FPF), não estão de braços cruzados diante das agressões sofridas pelo jogador brasileiro Vinícius Júnior, na Espanha. As agremiações e a entidade local fizeram coro ao repúdio mundial à atitude de torcedores do país europeu e, mais, prometem estar atentas para coibir o mesmo tipo de manifestação nas praças esportivas paraenses. No caso da FPF não se trata, a bem da verdade, de algo momentâneo, visto que a instituição adotou este ano o Parazão inclusivo.

Em nota, publicada em seu site, a Federação, além de condenar o ocorrido no estádio Mestalla, ressaltou que, a cada semana, o Campeonato Paraense, encerrado na última sexta-feira, colocou em discussão uma forma de preconceito a ser combatido. Na grande final da competição, envolvendo Clube do Remo e Águia de Marabá, o tema foi, conforme salientou o comunicado, “o mais frequente no futebol em todo o mundo: o racismo”.

O Paysandu lamentou o ocorrido e contestou a situação vivenciada pelo jogador brasileiro. “O Paysandu e sua torcida repudiam todo e qualquer ato de racismo dentro e fora de campo. Medidas compatíveis, na prática, diante de tamanho absurdo precisam ser tomadas”, afirmou nota emitida pela agremiação. O Remo, que já teve jogadores seus envolvidos em situação parecida, também abominou em suas contas nas redes digitais a atitude dos torcedores do Valencia e de outros casos anteriores. “Até quando? O Clube do Remo manifesta total solidariedade ao atleta Vinícius Júnior, vítima de racismo em diversos jogos da Liga Espanhola…”, diz a nota azulina.

LUTA NECESSÁRIA – O sociólogo, doutorando em antropologia, Felipe Damasceno, de 34 anos, que se dedica ao estudo do racismo no esporte, em especial no futebol, aponta para algo histórico no caso enfrentado por Vinícius Júnior na Espanha.  “O racismo praticado contra o Vinicius possui a carga histórica da desumanização do sujeito não ocidental pelo Europeu”, diz. “Nem mesmo o fato de saberem que estavam sendo filmados inibiu os praticantes de destilar o ódio ao atleta. A retaliação de alguns jogadores ao Vinicius agrava mais ainda o fato”, ressalta Felipe Damasceno.

Trazendo a questão para o nosso “quintal”, o pesquisador afirma: “Hoje, há um debate crítico nos ambientes futebolísticos, muito por conta do avanço dos Movimentos Antifascistas. Aqui em Belém, os grupos Remo Antifascista e Paysandu Antifascista caminham juntos na luta pela inclusão e democratização dos ambientes esportivos. A luta feminista e antirracista também tem avançado nas torcidas organizadas daqui. O que está aquém é o combate à homofobia, visto que ainda há muitos cânticos homofóbicos entoados nos estádios de Belém”, argumenta.

Damasceno vê com bons olhos a evolução do combate ao racismo no Brasil, sobretudo após a saída do ex-presidente Jair Bolsonaro do poder. Ele confia em uma evolução maior neste campo sob a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva. “As perspectivas são as melhores possíveis, pois o atual ministro dos Direitos Humanos – Silvio Almeida – é um estudioso e ativista antirracista. Aqui no Pará, temos Jarbas Vasconcelos à frente da novíssima secretaria da Promoção da Igualdade Racial que também é um profissional disposto a melhorar o cenário local mitigando casos de racismo em nosso Estado”, afirma Damasceno.

O sociólogo acredita que as campanhas desencadeadas contra o racismo existente nos meios esportivos ajudam a mudar o quadro. Mas ele alerta: “Algumas pessoas vêm mudando de comportamento por conta das campanhas educativas, mas outras, infelizmente, só mudam de comportamento por meio de responsabilização judicial”, avalia.