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Brasil é país do carnaval e do futebol. Mas se o samba no pé está em dia, a bola nem tanto...

Matheus Miranda

Uma das duas “febres” do povo brasileiro está em plena ebulição após anos de hiato em virtude da pandemia de Covid-19: o Carnaval, festividade tradicional que deve comover todos os quatro cantos do país neste ano de 2023. A concentração na folia tem tudo para assumir a ponta de forma isolada no coração dos populares, visto a queda de rendimento de outra paixão nacional, no caso o futebol, que aos poucos tem perdido a grife pela ausência de resultados expressivos a nível de seleção, clubes e de atletas em termos individuais.

A Copa do Mundo do Qatar, realizada de novembro a dezembro do ano passado, deixou isso bastante escancarado. A equipe canarinho não foi competente o suficiente para passar das quartas de final, ao passo que seleções sem tradição deram um retorno mais interessante no gramado, como Marrocos e Croácia, sua algoz, ao chegarem ao quarto e terceiro lugar, respectivamente.

Por sinal, a vida da seleção pentacampeã do mundo tem se resumido a fracassos em Mundiais. Há mais de 20 anos o time não disputa uma final de Copa do Mundo. Sua última decisão em um torneio relevante, por sinal, foi perdida em casa, na Copa América de 2021, para a Argentina, em pleno Maracanã, em um verdadeiro salão de festas aos ‘hermanos’. A partir disso, a sina dos clubes são um verdadeiro reflexo da hierarquia do esporte.

Apesar de deitar e rolar a nível continental devido ao alto poder de investimento, em um choque mais contundente, as equipes brasileiras padecem nas quatro linhas. No Mundial de Clubes da FIFA isso fica evidente com eliminação precoce para times de países sem tanta relevância no esporte, como foi o caso do Palmeiras-SP, ao ter ficado de fora do pódio em 2020, na quarta posição, e o Flamengo-RJ, em terceiro, neste ano, eliminados por Tigres-MEX e Al-Hilal-ARA. Sem contar outros vexames, como o do Atlético-MG (Raja Casablanca), Internacional (Mazembe), etc…

Por fim, donos de um talento único, o que por anos mantém a vitrine brasileira em alta, os nossos jogadores, contudo, também têm perdido espaço em reconhecimento mundial. Na premiação Ballon D’Or da revista francesa France Football, o último vencedor com origem local foi em 2007, há 16 anos, com a conquista do meia-atacante Kaká. No The Best da FIFA os craques sequer são indicados. Neste ano, por exemplo, o pódio ficará entre dois franceses (Karim Benzema e Kilyan Mbappé) e um argentino (Lionel Messi). Fora isso, a Champions League desta temporada, principal competição de clubes da Europa, vê em sua fase de mata-mata o menor número de atletas brasileiros presentes dos últimos tempos, apenas 26.

O Brasil, portanto, com tudo isso, pode ser o país do Carnaval, mas ele continua sendo o país do futebol? O Bola levou essa questão a ídolos, jogadores e cronistas do futebol local. Confira a seguir a opinião deles.

Para Agnaldo, Brasil está para trás em vários aspectos. É preciso trabalhar… Foto: Samara Miranda/Remo

SELEÇÃO ESTÁ EM “MODO AVIÃO”, DIZ AGNALDO

Tylon Maués

Umas das maiores referências históricas do Clube do Remo, multicampeão nos anos 1990, Agnaldo de Jesus fez sucesso dentro e fora dos gramados, quando comandou o time azulino na conquista do Parazão com 100% de aproveitamento, em 2004. Sem meias palavras, o Seu Boneco diz que o Brasil nunca deixará de ser uma potência, mas que está em uma espécie de “modo avião”, sem levar tanto perigo aos adversários. Respostas e soluções existem, afirma, mas tudo depende de vontade e um trabalho em longo prazo. “Às vezes não sabemos o tamanho que temos”.

“Nós nunca deixamos de ser uma potência, mas provisoriamente deixamos de ser protagonistas. Deixamos de fazer um trabalho forte na base e perdemos muita nossa essência, do atleta moleque, irreverente, driblador, que quebra as linhas. Hoje temos poucos atletas diferenciados, um jogador que consegue tirar a vantagem dessa técnica”, diz Agnaldo, deixando claro que a necessidade do talento não isenta a necessidade de um trabalho coletivo. “É muito pouco uma seleção depender de um atleta. Se ele não estiver bem, as coisas não andam. Precisamos sempre do craque, mas temos que ter um conjunto. Nisso estamos atrás”.

Coordenador técnico do Remo desde o início do ano, Agnaldo comenta sobre a necessidade de valorizar as categorias de base, em especial na seleção brasileira, além de um maior critério nas convocações. “Estamos ficando para trás na valorização da base, na transparência nas convocações. Entendo que há interesses enormes por trás das seleções. A gente vê gente até improvisado na seleção, o que para mim é inadmissível. Quem tem que ir é o melhor da posição”, diz. “Nunca deixaremos de ser um dos melhores, mas faz tempo que não temos o melhor e não sai desse ciclo europeu. Para mim tudo é trabalho para elevarmos nosso patamar, com profissionalismo, honestidade, se não for assim vamos continuar caindo nas fases intermediárias”, finaliza o Seu Boneco.

Para o atacante Muriqui, Brasil cresceu em termos táticos, mas ficou mais robotizado e abriu mão da individualidade – Foto: Samara Miranda/Remo

ESSÊNCIA FOI PERDIDA NO MEIO DO CAMINHO

Matheus Miranda

Na discussão referente ao futebol brasileiro quanto à manutenção da grife de país do futebol ou da retirada do rótulo imponente que o consagrou por todos esses anos, os protagonistas que representam a bandeira brasileira através da seleção ou clubes do Brasil afora, destacam a sua análise nesse momento. O atacante do Clube do Remo, Muriqui, experiente na função, com rodagem internacional, contextualiza a visão do esporte local através dos comentários dos estrangeiros e com base no que tem acompanhado ao longo da sua extensa carreira.

Aos 36 anos de idade e com passagem pelo futebol asiático e do mundo árabe, o ponta entende que alguns pontos foram determinantes pela oscilação no futebol canarinho ao longo dos últimos anos. “Acredito que o Brasil perdeu aquela individualidade, jogava com o drible. Hoje o futebol é muito tático, bloco baixo, linhas juntas. O Brasil teve essa evolução tática, mas perdeu um pouco do brilho, daquela coisa mais alegre”, entende.

Apesar disso, para Muriqui, uma coisa é imutável. “Acho que o Brasil vai ser o país do futebol pra sempre, eterno. O pessoal fora do Brasil tem muito respeito. A primeira coisa que se fala fora do Brasil é do esporte, se associa ao futebol. Acho que essa coisa de ser o país do futebol é eternizada e dificilmente vai perder”, destaca.

De 2010 até 2021, Muriqui atuou fora do Brasil antes de reencontrar o seu país de origem e fechar com o Avaí-SC na temporada passada e, neste ano, selar acordo com o Mais Querido. Durante o longo período percorrendo o mundo da bola, o jogador fez um comparativo do que encontrou no seu retorno, ao fazer um alerta. “Se você não tiver jogadores pra desequilibrar no momento de dificuldade, não adianta. No Brasil que eu notei quando voltei, senti uma evolução grande na compactação. Hoje não tem mais tanto espaço para jogar. Mas ao mesmo tempo os jogadores estão muito robotizados, não tem o drible, o improviso, o jogo fica robotizado. Já se sabe o que vão fazer. Acabou aquela do drible, mano a mano. Precisamos dessa essência”, aponta.

O goleiro bicolor Thiago Coelho diz que é preciso dar mais ênfase ao trabalho tático – Foto: John Wesley/PSC

TALENTO PRECISA SER ALIADO À VISÃO TÁTICA

Tylon Maués

Sem dar uma volta olímpica numa Copa do Mundo desde 2002, o Brasil já empatou o maior tempo sem títulos na competição, igualando o período entre 1970 e 1994. Há 10 anos sem conquistar um mundial de clubes. Titular do Paysandu, o goleiro Thiago Coelho admite que é uma situação real e a se lamentar internamente. Para ele, falta trabalho. Não que aqui se treine menos, e sim a qualidade e pela ênfase tática que se dá principalmente na Europa, desde as categorias de base. “O futebol brasileiro se apega muito ao talento e não evoluiu como os demais”, diz Thiago.

O jogador do Paysandu reforça a necessidade de uma qualificação nos treinamentos, deixando de basear o futebol nacional apenas no talento. Thiago defende que esse talento continua intacto, mas tem que ser melhor trabalhado. “O futebol brasileiro está devendo mundialmente. O futebol europeu e de outros centros evoluíram percebendo que o esporte não é só esse talento nato que o brasileiro tem. Futebol é força, aplicação tática, é determinação, cumprindo várias funções”, afirma. “O europeu, principalmente, entendeu muito bem isso. Ele sabe que um time bom tecnicamente e taticamente tem mais chances de vencer partidas e campeonatos”, completa o goleiro bicolor.

Com a experiência de quem está dentro do campo, Thiago ressalta que a quantidade de bons jogadores continua aparecendo todos os anos no Brasil e que tem que ser entendido que, se forem bem trabalhados, podem tornar a seleção brasileira quase invencível. “O Brasil é o maior celeiro do futebol e de talentos. Jogadores excepcionais aparecem sempre, por isso é o país do futebol e, quando aqui se entender que, se juntar o talento e habilidade ao jogo tático, a seleção voltará a ser a melhor do mundo, o time a ser batido”.

Ausência de títulos e de representatividade mundial do Brasil no futebol nos últimos tempos: parte tática e falta de profissionalismo estão no centro da questão – Foto: Lucas Figueredo/CBF

UM DIAGNÓSTICO PARA A CRISE

Matheus Miranda

Dono de um arsenal rico em talento, o que é visto e comprovado na compra de jovens das categorias de base por mercados atrativos da Europa, Ásia e do mundo árabe, hoje, o futebol brasileiro tornou-se uma espécie de centro de treinamento do planeta no que se refere à transição para equipes de ponta. Esse cenário é determinante para o fortalecimento do futebol de outros países e tornando menos competitivo o jogado em solo brasileiro.

O radialista e cronista esportivo Guilherme Guerreiro, da Rádio Clube do Pará, aborda: “Eu não diria que o Brasil saiu da prateleira superior do futebol mundial. Em todas as grandes competições mundiais o Brasil é considerado favorito. Agora, que deixou de ser protagonista, pelo menos nas duas últimas duas décadas, isso é verdadeiro. O Brasil tem jogadores qualificados e de uma técnica apurada, tanto que muitos jovens talentos são levados para o futebol pelo mundo inteiro, principalmente para a Europa, que é hoje o maior palco do futebol do mundo”, explica.

Para Guerreiro, a questão tática tem muito a ver com a falta de protagonismo do futebol brasileiro: “No meu entendimento o Brasil perdeu essa força maior porque tem muita dificuldade de obediência tática. O atleta brasileiro tem um talento acima da média e talvez por isso não tenha a aplicação tática que outro tem. O futebol europeu adequou isso. Esse protagonismo foi perdido porque nós não nos habilitamos a outras situações do futebol. Hoje o futebol é físico, é propositivo, é tático. Tem várias configurações que precisam se somar”, analisa.

PROFISSIONALISMO – Hoje, o futebol brasileiro é composto por quatro divisões de disputa (Séries A, B, C e D), mas com apenas a elite dona de uma competição regular e limitada ao desempenho, investimento e resultado de um círculo restrito de 5 equipes como amplas favoritas em tudo o que disputam. Esse abismo entre agremiações é o reflexo da falta de profissionalismo e comprometimento geral no esporte, que culmina com a queda em todos os níveis.

O jornalista Kaio Rodrigues avalia: “Na minha visão, o que falta para a maioria de quem faz o nosso futebol (clubes e federações) é planejamento. Nosso calendário é desorganizado, com excesso de jogos. Os dirigentes são, em sua maioria, ultrapassados e que priorizam interesses pessoais ao invés de consolidar nosso futebol. Há a mentalidade do imediatismo, que as coisas são feitas da noite para o dia. E isso está na nossa imprensa também. O que dificulta um trabalho a longo prazo. É necessário tempo para uma evolução”, diz.

Kaio também destaca outro fator importante: “Nas categorias de base passaram a viciar os atletas, deixando o talento um pouco de lado para priorizar a força física. Há um atraso nas questões táticas, isso porque muitos treinadores ainda relutam em aceitar a modernização. Um treinador precisa saber trabalhar com os setores táticos, técnicos, físicos e emocionais. Falta mais estudo nas gestões e menos emoção. Ou seja, falta profissionalismo”, destaca.

O jornalista Júnior Cunha entende que o futuro canarinho é promissor. “O futebol brasileiro segue produzindo jogadores de alto nível e que abastecem os principais clubes da Europa. Nos últimos anos tivemos as saídas de Vinicius Júnior e Rodrygo para o Real Madrid, onde ambos são peças centrais do time do (Carlo) Ancelloti. Temos também jogadores como o Antony e o Gabriel Martinelli sendo destaques na Inglaterra, na principal liga nacional do mundo. Agora, neste início de 2023, estamos vendo o Endrick já com contrato firmado com o Real Madrid e o Andrey Santos, destaque do Vasco e da seleção sub-20 na conquista do Sul-Americano, indo para o Chelsea. Nessa de formação de jogador não vejo o Brasil perdendo o papel de país do futebol”, pontua.