Belém também é uma cidade negra, é o que diz o doutor em História da América e da África pela Universidade de Barcelona, professor Diego Pereira Santos sobre a influência africana na cidade. Completando 409 anos, no próximo dia 12 de janeiro, a capital paraense também recebeu povos negros escravizados vindos da África que, aqui, trabalharam na construções de igrejas, prédios históricos e deixaram o seu legado arraigado na nossa cultura.
Belém - A influência africana na história de Belém se dá com o início do comércio transatlântico de negros africanos para a Amazônia, ainda no século 17. Naquele período, a região era independente do Estado do Brasil devido a uma mudança administrativa que, em 1621, criou o Estado do Maranhão e Grão-Pará, diretamente subordinado à Lisboa. Porém, como no resto do país, o comércio de mão de obra escrava passa a ter maior importância econômica para a região, sendo realizada através dos portos de São Luís e Belém.
De acordo com o historiador Diego Pereira Santos, professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA), para chegar ao centro da unidade administrativa, a maioria dos navios passavam por regiões costeiras com praias bastante conhecidas hoje, como Salinas, Bragança e a Baía do Sol, em Mosqueiro. No desembarque, os escravizados tinham finalidade múltipla a depender do período em que foram traficados, mas sempre em trabalhos compulsórios, sendo vistos, juridicamente, como propriedade.
“Quando pensamos em escravidão não há uma única tarefa a ser executada pelos escravizados, eles tinham como finalidade uma multiplicidade de trabalhos em vários ofícios. Eles trabalhavam na questão da agricultura, se estabeleciam em Belém na escravidão do comércio, em trabalhos domésticos, como trabalhadores de ganho e ainda na prática de trabalhos urbanos, como os ofícios de ferreiro, carpinteiro e, principalmente em Belém, tinham muitos aguadeiros”, revela o docente.
O historiador também aponta que os escravizados que chegaram à Amazônia eram, predominantemente, da região da Senegâmbia, situada ao norte da Linha do Equador entre o Sahel, as florestas da Guiné, o Senegal e a Gâmbia. No século 18, a instalação da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, em 1755, por Marquês de Pombal, tinha a finalidade de abastecer a demanda de mão de obra de negros escravizados devido à proibição da escravização dos indígenas. Por isso, chegam a Belém muitos africanos dos portos de Bissau e Cacheu, ambos na África Ocidental.
Essa particularidade confere uma característica peculiar ao comércio de escravizados na região amazônica. Segundo o que dá conta uma investigação, os africanos que chegavam a Belém eram majoritariamente islâmicos. Mas, devido a uma lógica cristã, negros islamizados não eram escravizados afim de diminuir as chances de aliança em caso de rebelião. Sendo assim, eram trazidos os bijagós que já tinham contato com o catolicismo ainda em África. Esse traço reflete na construção de igrejas, irmandades e práticas religiosas relacionadas ao culto de santidades negras, criando, assim, a relação com os santos negros católicos.
Segundo o historiador, um levantamento ainda em curso aponta a possibilidade de que 70 a 100 mil negros escravizados chegaram ao território amazônico de forma legal durante todo o período escravagista. Com o tempo, o desembarque em localidades mais afastadas de Belém e as leis de libertação dos escravos, essas pessoas foram se espalhando pelo território paraense e influenciaram não só na religiosidade, mas nas práticas culturais da cidade, como a dança e culinária, através da mestiçagem entre a cultura africana, indígena e europeia.
“Essas influências têm caráter de mestiçagem. A nossa culinária tem muita relação com o indígena, mas a influência africana também aparece em manifestações religiosas, como o Tambor de Mina, uma religiosidade afro amazônica que incorpora elementos ibéricos, indígenas amazônicos e africanos. Tem também a questão cultural da festa de Sao benedito, em Bragança, onde se tem a devoção pelo santo negro, mas você percebe elementos da idumentária portuguesa, assim como no próprio Arraial do Pavulagem, são possibilidades para entender os Cordões de Pássaros e de Bois em Belém”, destaca o historiador.
PERMANÊNCIA
O Pará é o quarto estado com maior número de pessoas autodeclaradas quilombolas (135.033), atrás apenas da Bahia, Maranhão e Minas Gerais, conforme o levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com dados do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), em 2022, eram 125 áreas remanescentes de quilombos no estado, sendo 62 delas tituladas. No ranking dos municípios, estão Abaetetuba com 14.526 quilombolas; Baião, com 12.857, ambos localizados na Região de Integração Tocantins, ocupam a quinta e sétima posições, respectivamente.
Quilombolas são os descendentes de comunidades de negros escravizados que fugiram para os quilombos, local afastado do centro da província onde viviam em liberdade e resistiam ao regime escravagista de época, entre os séculos XVI até a abolição da escravatura, em 1888. Durante mais de 400 anos, essas pessoas desenvolveram estratégias organizacionais para que vivessem da terra em relativo isolamento. Através do conhecimento do cultivo de cana de açúcar, milho e outras culturas, essas comunidades produziam o seu sustento e faziam comércio com localidades vizinhas.
Ao pensar na influência da cultura africana no território belenense, segundo o historiador Diego Pereira Santos, é preciso refletir sobre a presença dos remanescentes de quilombos em regiões próximas à capital paraense. Um deles é o Quilombola Abacatal, localizado no bairro do Aurá, em Ananindeua, que até 2021 abrigava 150 famílias, responsáveis pela preservação de uma área de mais de 583 hectares. Além desse, também há muitos quilombos nos municípios de Moju e Acará, e na fronteira entre o Pará e o Maranhão.
“Nunca podemos esquecer as comunidades quilombolas porque há uma memória de ancestralidade que é permanente. Quando olhamos nossa população, apesar de que há uma crença de que Belém é uma cidade morena, muito influenciada pela questão da mestiçagem, na verdade, o que devemos entender é que Belém é uma cidade negra. É uma presença muito marcante que vemos no feirante do Ver-O-Peso e, em certa medida, nas áreas periféricas, além dessas pessoas sempre ocuparem outros lugares no centro da cidade. Como em todo processo urbano, há uma ideia de afastar essas populações do centro, mas isso nunca se dá de forma completa”, afirma o historiador.
MEMÓRIAS ESQUECIDAS
Além de parte da história, Belém apagou uma memória geográfica da escravização dos povos africanos. Hoje, ao olhar para as ruas do Centro Histórico da capital, é impossível saber que ali foi palco de dois pelourinhos. O primeiro deles ficava situado onde hoje é o Complexo Feliz Lusitânia, na confluência de três antigas igrejas: Igreja de Santo Cristo, Igreja dos Jesuítas (Santo Alexandre) e a Igreja de Nossa Senhora da Graça (Catedral Metropolitana de Belém), mais exatamente na atual praça Frei Caetano Brandão.
Já o segundo pelourinho foi erguido onde hoje é a parte detrás do Mercado de Carne Francisco Bolonha, defronte para a travessa 7 de Setembro, que era chamada “travessa do Pelourinho”. “Houve um silenciamento dessa memória, principalmente quando se instaurou a República. Lá por volta de 1784, foi pedido pelo rei de Portugal que o pelourinho da praça Frei Caetano Brandão fosse retirado porque ali havia uma série de ‘confusões’, gerava ‘incômodos’ à população local. Já o segundo castigo público tinha uma ideia de semicírculo. Nos dois lugares não há placa sinalizando que ali existia um pelourinho”, finaliza Diego Santos.
Atualmente, o Governo do Estado do Pará, através da Secretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos (Seirdh), tem trabalhado para organizar, em Belém, um Memorial da Escravidão, que será instalado na área do ComplexoFeliz Lusitânia, local da existência dos pelourinhos e onde negros africanos escravizados desembarcaram durante o período escravagista brasileiro. A iniciativa tem o objetivo de dar luz a memória dos povos negros, que foi quase que completamente apagada ao longo dos anos.