COMÉRCIO

De geração em geração, as mercearias resistem em Belém

Com forma tradicional de comercialização por “retalho”, tabernas e mercearias resistem na capital paraense.

BELEM-PARA-BRASIL-01-08-2025-FOTOS ANTONIO MELO-( RESISTENCIA COMERCIOS-ANTIGOS)( PORTO DO SAL),CIDADE VELHA)( JOYCE DA SILVA FURTADO,41)
BELEM-PARA-BRASIL-01-08-2025-FOTOS ANTONIO MELO-( RESISTENCIA COMERCIOS-ANTIGOS)( PORTO DO SAL),CIDADE VELHA)( JOYCE DA SILVA FURTADO,41)

Belém e Pará - A grande diversidade de utensílios organizados em prateleiras de madeira é o resquício de uma tradição que sobrevive ao longo do tempo, passando de geração em geração. Com um modelo único de comercialização, as tabernas e mercearias resistem em alguns bairros da capital paraense, mesmo em meio à expansão de grandes redes de supermercados pela cidade.

Meio quilo de açúcar, um quarto de charque e, de contrapartida, uma boa conversa. É esse o diferencial encontrado por muitos consumidores que ainda se dirigem às antigas mercearias para comprar itens de primeira necessidade.

FOTO: ANTONIO MELO (PORTO DO SAL/CIDADE VELHA)

Em uma das laterais do Mercado do Porto do Sal, no bairro da Cidade Velha, a taberna intitulada Casa Castelinho já se faz presente desde 1945, quando o comerciante português Carlos Dias deu início ao negócio. Passados 80 anos, até hoje é possível ver as antigas prateleiras de madeira instaladas no local que hoje é administrado pelo comerciante João Alaílson, 50 anos.

“Essas prateleiras são da época do português ainda, é muito antigo. Eu acho que eu vou morrer e elas não vão se acabar porque você vê que a madeira ainda tá boazinha, maciça”, avalia. “Muita gente passa por aqui e para pra entrar por causa da prateleira. Perguntam: ‘égua, essa prateleira ainda existe? Eu lembro dela de quando eu era criança’”.

Ainda que a estrutura ainda mantenha muito do original, João Alaílson lembra que os hábitos de consumo dos clientes mudaram, influenciados em grande parte pelas transformações ocorridas no própria forma de chegada de mercadorias em Belém.

Quando a chegada dos produtos ainda se dava, em grande parte, pelo próprio porto, as pessoas procuravam muito pelos pescados salgados vendidos ‘a retalho’ no comércio: pirarucu, gurijuba. Hoje, os enlatados acabam sendo preferidos.

“Aqui sempre foi mercearia, mas naquele tempo o Porto do Sal era diferente. Depois que fizeram a Alça Viária e o Entroncamento, o movimento caiu muito. Hoje, os barcos que ainda saem daqui do porto que compram enlatado, refrigerante, cigarro, uma bebida pra levar. Porque no barco é muito mais caro. E com isso a gente vai sobrevivendo”.

No caso de João Alaílson, a sobrevivência às mudanças nos hábitos de consumo na mercearia já dura 20 anos. Ele lembra que assumiu o comércio quando a família do primeiro proprietário não pôde mais tocar o negócio. “Eu trabalhava para o neto do português, o Carlos Dias, em um lava jato. Quando o português faleceu, ficou a filha dele, mas depois foi passando o tempo e ela foi ficando com uma idade que não dava mais pra ela ficar aqui. Aí eles passaram pra mim e eu fiquei até hoje”.

Do outro lado do Mercado do Porto do Sal, a história da comerciante Joyce da Silva Furtado, 41 anos, também tem relação com a transferência do negócio de gerações mais antigas. Porém, no caso dela, a missão de tocar o comércio batizado de Casa Barcarena partiu das mãos do próprio pai, Jurandir do Amaral Furtado, conhecido por todos como ‘delegado’.

“Tem mais de 50 anos a mercearia, quem começou foi o meu pai. Quando eu era criança, eu vinha aqui porque estudava no Colégio do Carmo. Eu e a minha irmã passávamos por aqui para ir pra aula. E quando a gente voltava, a gente já ficava por aqui”, recorda. “Quando o meu pai ficou doente, ele tinha problemas no coração, a gente já passou a vir pra ajudar ele mesmo. Isso era final dos anos 1990, começo de 2000. E em 2020 ele faleceu e a gente assumiu”.

A presença do fundador da Casa Barcarena ainda é lembrada no comércio, seja pela foto fixada próximo do caixa ou pelo time de preferência que ele fazia questão de fazer referência e que Joyce faz questão de manter até hoje. Além da própria forma tradicional de comercialização, por ‘retalho’.

“A gente vende a partir de uma quarta de charque, que é R$ 12. Era como o meu pai vendia, mas antes era uma peça maior, de 30 kg. Hoje a gente compra de 5 kg e vai dividindo a medida que os clientes vão comprando. E tem gente que compra charque aqui e ainda quer que a gente embrulhe no jornal”, lembra Joyce, ao comentar que algumas mudanças também foram necessárias para que o comércio se mantivesse de pé.

“A gente vende de tudo um pouco. Hoje, o que sai mais são esses utensílios de pesca porque tem muitos pescadores que trabalham por aqui, desde o Ver-o-Peso, e vêm comprar aqui”.

Mais adiante, no Beco do Carmo, o comerciante Ozi Pantoja também dá continuidade à mercearia iniciada por seu pai há 55 anos, seguindo a tradição da venda a retalho. “O que as pessoas mais vêm comprar aqui é farinha, açúcar, café, feijão, arroz, bebida. E a gente vende retalhado: meio quilo de arroz, 100 gramas de café, uma quarta de açúcar, cachaça em dose”, conta, ao medir uma quantidade de farinha na balança que é usada desde a época do seu pai, assim como o balcão de madeira.

FOTOS ANTONIO MELO – PORTO DO SAL/CIDADE VELHA

Mais uma vez, enquanto muito da tradição ainda é mantida, algumas coisas precisaram mudar para que o comércio seguisse sua trajetória. “Fiado a gente não vende mais, quase. Hoje em dia não dá mais pra vender porque as pessoas não pagam. Antigamente meu pai vendia no caderno”.

Tradição

A balança acomodada no balcão de outra mercearia instalada da rua Domingos Marreiros, também é da época em que a venda fiada era mais comum. Atrás do balcão, quem atende os clientes hoje é Maria Enizeni, mas ela lembra que o posto é temporário.

“Quem fica aqui é o meu marido, que é português. Essa mercearia vem passando de português para português. E estamos há 40 anos aqui. Ele não quis fechar, ele quer manter e eu vim pra cá até ele se recuperar de uma cirurgia e assumir o que é dele”, conta. “Aqui as pessoas procuram tudo que é retalho. Arroz, farinha, café, tudo é retalho. É uma coisa que só tem em mercearia, né? Então as pessoas continuam procurando”.