HISTÓRIA

Conheça a fortaleza de Belém que foi pelos ares

Saiba mais sobre a Fortaleza de Nossa Senhora das Mercês da Barra, datada de 1685, que foi destruída por uma explosão no século XX

Conheça a fortaleza de Belém que foi pelos ares

Sem muitos recursos bélicos ou meios de locomoção além da navegação fluvial, a fundação das cidades brasileiras esteve, em grande parte, vinculada à construção de fortificações que pudessem garantir a proteção dos territórios ocupados. Essa realidade também fez parte da história da fundação de Belém, em 1616.

Marco da chegada portuguesa ao território que viria a se tornar a capital do Pará, o Forte do Castelo é apenas uma das estruturas construídas para proteger a cidade. Parte dessa rede de defesa, a Fortaleza de Nossa Senhora das Mercês da Barra, datada de 1685, guarda uma curiosidade: foi literalmente “pelos ares”, destruída por uma explosão no século XX. Apesar de não restarem vestígios físicos da construção, a memória permanece viva no imaginário da capital paraense.

Sob domínio português, Belém foi estrategicamente ocupada com uma rede de fortificações que permitia a vigilância de diferentes pontos. O objetivo era monitorar o território contra possíveis invasões estrangeiras. Diretora da Faculdade de Conservação e Restauro do Instituto de Tecnologia (FACORE/ITEC) da Universidade Federal do Pará (UFPA), a professora Roseane da Conceição Costa Norat explica que a cidade, então a principal do território do Grão-Pará, chegou a contar com pelo menos doze estruturas, entre fortes, baterias e outros sistemas voltados à defesa.

Ainda em 1616, foi construído o então Forte do Castelo (atual Forte do Presépio), na confluência da Baía do Guajará com o Rio Guamá. Décadas depois, em 1665, surgiu o Forte São Pedro Nolasco, aos fundos do Convento dos Mercedários. Atualmente, esses são os únicos remanescentes dessa rede defensiva — sendo que, do São Pedro Nolasco, restam apenas ruínas, localizadas na área do anfiteatro da Estação das Docas.

Já a Fortaleza de Nossa Senhora das Mercês da Barra foi a terceira a ser construída em Belém, ainda no século XVII. Erguida em 1685 sobre uma ilhota de pedra na entrada do porto da cidade, a estrutura de planta circular foi destruída por uma explosão em 9 de maio de 1947.

Segundo a professora Roseane Norat, o nome da fortaleza se deve à formação geológica sobre a qual foi construída: a barra.

“Dentro de uma Baía você vai ter determinadas faixas que, dependendo das correntes fluviomarinhas, acabam ficando em um ponto onde não há uma corrente tão forte e, com isso, acaba formando um depósito de sedimentos naquela área. Quando isso ocorre, eles conseguem construir, em alguns pontos que têm esses depósitos de sedimento, no ‘meio do rio’. Então, você vai ver esse termo Fortaleza da Barra em vários lugares porque elas foram construídas na barra, que é esse termo geológico relacionado a essa formação”, explica.

A estrutura circular, localizada na Baía do Guajará, na direção da atual área do bairro Val-de-Cans, abrigava uma guarnição militar. Sua função era formar, junto aos demais fortes da cidade, uma rede de vigilância. No entanto, com o passar do tempo, esse modelo de defesa foi perdendo eficácia.

“Chega um momento em que essas estruturas vão perdendo a eficácia porque outras formas de defesa vão surgindo. As fortalezas acabam sendo praticamente abandonadas porque, quando as artilharias vão avançando, o canhão não tem mais tanta eficiência”, pontua Norat. “O grande impacto vai ser já no século XX, na Primeira Guerra, quando o bombardeio começa a ser aéreo. Nesse momento, muitas fortalezas acabam sendo abandonadas e isso ocorre não só no Brasil, mas no mundo todo”.

Antes desse declínio, outro episódio histórico comprometeu fortemente as estruturas defensivas da cidade, a Revolta da Cabanagem, em 1835.

“Com isso, nós vamos ter combates e muitas das fortalezas de Belém já vão ficar arrasadas, bastante danificadas com esse processo”, afirma a professora. “E o que acontece? O Forte do Castelo vai ser reerguido, ele é praticamente reconstruído em várias obras que ocorrem a partir de 1850. O Forte São Pedro Nolasco fica ali, não desperta mais muito interesse e, quando vão construir o porto, há autorização para ele ser demolido porque era mais importante economicamente para a cidade ter um porto do que ter um forte que estava em ruínas”.

No caso da Fortaleza da Barra, sua estrutura não chegou a ser danificada nesse período, mas acabou abandonada, perdendo sua função defensiva. Já no século XX, passou a servir como depósito de pólvora. Foi esse novo uso que levou à explosão que resultou na destruição total da fortificação.

“O que acontece é que a pólvora é altamente inflamável. Então os relatos contam que houve uma tempestade nesse dia e deve ter caído um raio no local que já tinha energia elétrica e muito provavelmente essa combinação fez com que uma faísca acionasse esse depósito de pólvora que tinha lá e ela explodiu. Ela vai ao ar, literalmente”, relata a pesquisadora.

“Os relatos contam que foi uma explosão muito violenta, que foi ouvida na cidade. Como ela não tinha mais sentido, não havia interesse em restaurar e, como a explosão é muito significativa, ela vai ficando lá. Com o tempo, o que ainda tinha lá de destroços acaba sendo levado pelo próprio movimento das marés”.

Hoje, não é mais possível encontrar qualquer vestígio físico da Fortaleza da Barra — além dos registros históricos e iconográficos. Como sua estrutura ficava acima da linha d’água, após a explosão restou apenas a barra, formação geológica natural que fica a maior parte do tempo submersa. Para a professora Roseane Norat, mais relevante do que procurar vestígios é refletir sobre a importância do cuidado com o patrimônio.

“O mais importante é a gente olhar para essa memória de algo que, infelizmente, não existe mais, nesse caso, por uma fatalidade, mas uma fatalidade em decorrência de uma certa irresponsabilidade de usar aquela estrutura como depósito de produtos inflamáveis”, avalia. “Não houve nenhuma apreensão daquela estrutura como patrimônio cultural, você vê que ela não tinha nem tombamento e isso já ocorre em 1947, quando já se tem alguns tombamentos no Brasil”.

Assim como Belém, outras cidades brasileiras contaram com redes de fortificações erguidas ainda no período colonial. Em algumas delas, como Salvador (BA), parte dessas estruturas foi preservada e hoje compõe circuitos turísticos e culturais. Para Roseane Norat, o episódio serve de alerta.

“Essa história serve, nos dias de hoje, para que as pessoas se lembrem que, se elas não cuidam bem dos seus bens patrimoniais, quer sejam os mais antigos, quer sejam aqueles que são mais recentes, a gente fica com essa memória comprometida”, reflete.

“Assim como foi com o Grande Hotel, assim como foi com a Fábrica Palmeira, assim como foi com o Reservatório Paes de Carvalho, essas grandes estruturas muito bonitas e simbólicas que Belém tinha e perdeu. Que sirvam de exemplo para que a gente cuide bem do que nos resta”.

(A primeira versão desta matéria foi publicada originalmente em 25 de julho de 2021, na edição impressa do DIÁRIO).