Hilton P. Silva*
A poucos meses da 30ª Conferência Mundial do Clima, a COP30, a ser realizada em Belém do Pará, no coração da Amazônia, acaloradas discussões nas redes sociais apontam as dificuldades logísticas da cidade em receber os cerca de 50 mil visitantes estrangeiros esperados para o evento. As principais preocupações dizem respeito aos preços de alojamento na outrora conhecida Metrópole da Amazônia, que são considerados altos demais por diversos interlocutores estrangeiros, inclusive algumas delegações a serem apoiadas pela ONU. Já segundo outras fontes, os valores de aluguéis em todas as cidades onde já ocorreu uma COP aumentaram significativamente. Fala-se de “preços estratosféricos” e “valores aviltantes” etc., o que seria impeditivo para delegações inteiras, inclusive Europeias. Será?
Ao longo dos séculos, a Amazônia tem sido vista pelos europeus de diversas formas, do “Paraiso Terrestre” do Frei Carvajal, ao “Inferno Verde” do Humboldt, passando pelo lugar das cidades douradas perdidas na floresta dos exploradores dos séculos XVIII e XIX, e a grande fonte de recursos naturais da atualidade. Em todas essas descrições evidencia-se visões surreais, nenhuma das quais leva em consideração a realidade física ou as populações que vivem na região. Infelizmente, estas visões distópicas, que evidenciam ignorância generalizada, não se limitam aos estrangeiros, mas são frequentes também em diversas regiões do Brasil.
Enquanto as percepções de quem olha de longe permanecem distorcidas, ao longo destes séculos a região tem sido continuamente objeto de exploração estrangeira, desde aquela da mão de obra escravizada indígena dos tempos coloniais para a extração das drogas do sertão até os garimpos, a pecuária extensiva, e o avanço da fronteira da soja e do arroz atualmente. A região mais biodiversa e sociodiversa do planeta, por sua situação geopolítica e como potencial modulador climático, continua a ser, ao mesmo tempo, desconhecida e objeto de cobiça.
A COP30 em Belém oferece ao mundo, pela primeira vez, a oportunidade de conhecer a realidade da região Amazônica por aqueles responsáveis por tomar decisões sobre os rumos ambientais do planeta. Porém, ao invés de debater sobre os temas ambientais candentes, que afetam toda a humanidade, num dos lugares centrais para o equilíbrio climático, aproveitando a oportunidade para envolver diretamente os povos e comunidades tradicionais, do Brasil e do mundo, que muito tem a nos ensinar sobre proteção da natureza e da biodiversidade, parece que o principal assunto de interesse, nacional e internacional, é quanto custa alugar um quarto na cidade. Isso é muito triste.
Não porque não haja aproveitadores e exploradores por aqui, o que por certo é lamentável, mas infelizmente eles existem em todos os lugares, e Belém não é exceção. Mas porque a cidade evidencia há mais de um século enorme capacidade de adaptação ao receber mais de um milhão de turistas para participar de um dos maiores festivais religiosos do mundo, o Círio de Nazaré. Portanto, nunca faltou capacidade à Mangueirosa, outro apelido carinhoso, de acolher visitantes, com sua fabulosa cozinha, sua belíssima paisagem e seu receptivo povo.
Não acompanho os altos e baixos dos preços nas redes sociais. Porém, andando pela cidade, conversando com as pessoas, observando os preços escritos nos estabelecimentos, nas feiras e mercados, perguntando pelos Airbnb, não se observa mudanças substanciais, embora aqui e acolá apareça uma conversa sobre “aproveitar” a vinda dos estrangeiros para “faturar uns trocados em dólar.” Em geral, a cidade não está mais cara do que o normal. Belém nunca foi uma cidade barata de se viver.
A comida e os aluguéis sempre levaram grande parte do salário dos paraenses. Porém, garanto, ainda assim tudo muito barato se comparado a Londres, Paris, Roma, Nova Iorque, Denver, Chicago ou Tóquio. Daí meu estranhamento quando pessoas que já estiveram nesses locais em missões oficiais reclamam do valor de 400, 500 ou 600 dólares por dia por um quarto para uma pessoa. Será que a Amazônia não merece esse valor? Será que o fato de a Amazônia ter sido sempre um lugar de exploração não criou nas pessoas a ideia, incorreta assim como tantas outras citadas no começo deste texto, de que aqui tudo seria “barato”? Vejo, portanto, em muitas dessas reclamações um quê de colonialismo.
Mas esse colonialismo não vem apenas de fronteiras externas. Quando pessoas de outras regiões do Brasil dizem que a cidade “não tem condições” de receber um evento do porte da COP30, que há esgoto a céu aberto, que há pessoas morando em condições precárias, que há altos níveis de violência, que há ruas esburacadas, que há conflitos sociais devido a projetos de urbanização, que há destruição ambiental, elas também estão expressando seu preconceito sobre a cidade e sobre a própria Amazônia.
Sim essas coisas todas ocorrem em Belém, elas ocorrem também em Manaus, em Fortaleza, Salvador, Cuiabá, Goiânia, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre, e atualmente em todas os grandes centros urbanos do mundo, sendo o reconhecimento destas condições elemento fundamental para se entender a corrente crise planetária e buscar formas de mitigá-la. Belém não é exceção. É uma metrópole com todos os problemas, e benesses, de uma grande urbe. Estar na Amazônia apenas cria peculiaridades, como o aumento da complexidade da relação urbano-rural e da geografia insular, a intensidade da sazonalidade, e a necessidade de preservar mais do que destruir a floresta.
No caso dos participantes da COP30, a dura realidade da Amazônia não deve ser motivo para esta ser temida ou evitada, ao contrário, ela deve ser vista, sentida, cheirada e até, ainda que muito superficialmente, sofrida pelos visitantes, para que ao invés de discriminar, estes aprendam a respeitar os que aqui vivem, perduram e laboram cotidianamente para manter a floresta em pé, e levem para resto do Brasil e do mundo a mensagem do quão complexa é a nossa realidade e do quão necessário é que se mude a visão colonialista, exploratória e discriminatória que sempre pautou as relações do resto do mundo com esta região, que ora se mostra crucial para a sobrevivência de nossa espécie.
A crise climática global é crise econômica, é crise social, é crise política, é crise ideológica, é crise humanitária, é crise que afetará desproporcionalmente os mais pobres, os mais socialmente vulneráveis das cidades, os povos e comunidades tradicionais e seus territórios, os migrantes, os periféricos. A Amazônia contém todas essas realidades, e estar na Amazônia e poder construir diálogos com todos esses agentes sociais em seu lugar de existência é impagável.
A COP30 em Belém é um momento único na História da humanidade, quando poderemos juntos decidir se rumaremos para um mundo mais justo, solidário e resiliente, ou se continuaremos a trajetória de autodestruição. Não é hora de ter medo da Amazônia. É hora de enfrentar os preconceitos, superar as dificuldades e avançar na eliminação do colonialismo para a construção de um mundo melhor para todos e todas.
- Médico, biólogo e antropólogo. Docente da UFPA e da UnB.