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Posse de Milei marca 40 anos de redemocratização na Argentina

Posse de Milei marca 40 anos de redemocratização na Argentina Posse de Milei marca 40 anos de redemocratização na Argentina Posse de Milei marca 40 anos de redemocratização na Argentina Posse de Milei marca 40 anos de redemocratização na Argentina
Depois de uma das eleições mais memoráveis da história recente da Argentina, Javier Milei subirá à tribuna do Congresso Nacional
Depois de uma das eleições mais memoráveis da história recente da Argentina, Javier Milei subirá à tribuna do Congresso Nacional

JÚLIA BARBON

BUENO AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Depois de uma das eleições mais memoráveis da história recente da Argentina, Javier Milei subirá à tribuna do Congresso Nacional, receberá a faixa presidencial de Alberto Fernández e se tornará o 12º presidente eleito do país neste domingo (10), marcando seus 40 anos de democracia ininterruptos.
A nação tem motivos para comemorar. Mesmo passando por graves crises econômicas e profundos dilemas institucionais nesse período, não sucumbiu a novos golpes ou regimes autocráticos desde a ditadura de 1976 a 1983, uma das mais sangrentas da América Latina apesar da curta duração.

Isso porque houve um enfraquecimento dos militares enquanto força política e um reforço do sistema de partidos. Especialistas também citam o papel de Raúl Alfonsín, primeiro presidente eleito tido como “pai da democracia”, e uma cultura de memória construída pelos governos Kirchner, embora haja críticas sobre como isso foi feito.

Agora, porém, eles coincidem em afirmar que o regime democrático passa por um momento tenso na Argentina, como em grande parte da região, por uma sensação de que o sistema não conseguiu resolver os problemas básicos de emprego e renda. A ascensão de um líder que ganhou por seu discurso antipolítica ou “anticasta” é o sinal mais visível disso.

A última pesquisa Latinobarómetro aponta que, nos últimos três anos, aumentaram as duas pontas: tanto os argentinos que dizem preferir a democracia (de 55% para 62%) quanto os que acham que em algumas circunstâncias um governo autoritário pode ser melhor (de 13% para 18%).

“Isso surpreende na Argentina”, diz o relatório sobre o último dado, pontuando que no país a insatisfação muitas vezes se dá com um aumento da abstenção ou dos votos nulos e brancos nas urnas. Ainda assim, o país vizinho só perde para o Chile em termos de defesa democrática “e está muito melhor equipado que outros para resistir” a pressões, conclui.

“Em 2019, quando houve golpes na Bolívia, no Peru e se tacava fogo no Congresso da Guatemala, a Argentina vivia uma situação socioeconômica ainda mais difícil, mas houve uma transição [de Mauricio Macri para Fernández] sem nenhum tipo de problema”, lembra Matías Bianchi, diretor da Asuntos del Sur, organização que pesquisa a democracia latino-americana.

A democracia reinou mesmo após a população pedir “que se vão todos” em 2001, numa onda de protestos raivosos que fez o presidente Fernando de la Rúa fugir da Casa Rosada de helicóptero. O grito foi ressuscitado por Milei na campanha.

“Uma cultura política democrática muito forte se consolidou na década de 1980, com movimentos sociais, organizações estudantis, movimentos operários. Os partidos, de esquerda e de direita, conseguiram centralizar a discussão política”, analisa o cientista político.

O fracasso da Guerra das Malvinas contra a Inglaterra e os julgamentos dos líderes das Forças Armadas logo após o fim da ditadura, em 1985, reconhecido internacionalmente, tiveram um grande peso na desidratação dos militares, que não conseguiram impor suas condições na redemocratização, ao contrário do que ocorreu com a Lei de Anistia no Brasil.

Uma comissão civil foi rapidamente formada para investigar e documentar os crimes contra os direitos humanos no relatório “Nunca Mais”, e os comandantes Jorge Videla,
Emilio Massera e Roberto Viola foram condenados junto a outros ditadores por homicídios, sequestros, torturas e desaparecimentos forçados.

Esses são considerados méritos indiscutíveis do então presidente Afonsín, a quem Milei chamou de “fracassado hiperinflacionário” durante a campanha, enquanto contava ter comprado um boneco de boxe com seu rosto para dar socos. Em um debate, o então candidato também disse que “não foram 30 mil” mortos e desaparecidos, número simbólico no país.

“Houve algumas tentativas de golpe logo depois, mas foram abafadas rapidamente. Tanto no governo Afonsín quanto no de Carlos Menem [nas décadas de 1980 e 1990], as Forças foram muito controladas”, diz Cristian Altavilla, professor de direito constitucional e autor do livro “Democracia, Estado de Direito e Direitos Humanos na América Latina”.

Nos anos 2000, Néstor Kirchner apertou ainda mais o orçamento militar e chegou a nomear uma montonera (guerrilheira) como ministra da Defesa. Os governos dele e da esposa Cristina Kirchner tiveram uma forte política de preservar a memória da ditadura, com feriados e monumentos, afirma o pesquisador.

“Mas, apesar de terem dado muita importância ao assunto, eles trataram como questão partidária. Houve uma monopolização da defesa da democracia, quando na verdade diferentes partidos e forças tiveram uma importância. Isso contribuiu para a famosa ‘grieta’ [polarização] na Argentina”, pondera.

O historiador Luciano de Privitellio também tem uma visão crítica sobre a forma como as memórias foram criadas nos últimos 40 anos, sempre sobre a ideia de bons versus maus. “Foi importante como símbolo inicialmente, mas logo se isentou a sociedade de pensar sobre si mesma e sua responsabilidade. Não foram nove caras maus que criaram a ditadura”, diz.

Ele vê uma difícil relação entre a sociedade e a classe política hoje em dia. “Mantemos o problema da polarização brutal. Temos uma fratura social que produz duas ou três argentinas distintas, com visões muito diferentes, que fazem ser muito difícil governar o país”, afirma o professor titular da Universidade de Buenos Aires, coautor do livro “Histórica das Eleições na Argentina”.

Apesar de Milei ter acendido um alerta vermelho ao tratar a democracia como sistema ineficiente e a justiça social como “aberração política”, seu discurso mais radical não vem do lado militar, e sim econômico. Circulava com a Constituição na mão, e não costuma fazer críticas aos outros Poderes. Pelo contrário: antes de tomar posse, já teve que começar a negociar.