Cintia Magno
Lembrado em todo o país no dia 20 de novembro, o Dia da Consciência celebra a memória de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares morto em combate ao lutar contra a escravidão no período colonial brasileiro. Para além da luta história ocorrida em Pernambuco, porém, a resistência dos povos aquilombados também foi muito presente na Amazônia e parte da história vivenciada no Estado do Pará é lembrada, nesta semana, em uma programação conjunta da Secretaria de Cultura (Secult), da Secretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos (SEIRDH) e da Secretaria de Educação (Seduc).
Com início nesta segunda-feira (20), a programação reúne a documentação histórica das destruições dos quilombos do Trombetas, ocorrida na primeira metade do século XIX no Estado do Pará, com a produção historiográfica feita pelo professor Eurípedes Antônio Funes, cuja tese de doutorado foi publicada em livro com o título ‘Nunca tive senhor, sempre vivi nas matas’.
Secretária adjunta da SEIRDH, a historiadora Edilza Fontes aponta que o objetivo da programação é tentar demonstrar para a população em geral que, na Amazônia e, mais especificamente no Pará, existiu uma Amazônia negra, com escravizados, e que também foi marcada pela presença dos quilombos.
“A ideia que se tem é que aqui não teve escravidão e por isso não teve quilombos, o que não é verdade. O próprio Censo do IBGE demonstra isso, que nós temos uma população quilombola grande. Então, tem uma presença e se tem essa presença hoje, ela tem um passado. Partindo dessa ideia, nós fomos buscar o que se conhece dessa população quilombola no Pará”.
Para isso, se buscou na historiografia o livro do professor Eurípedes Antônio Funes, que fez uma tese de doutorado defendido na USP (Universidade de São Paulo), no início dos anos 90, e que é considerada um clássico dos estudos sobre quilombos no Brasil. “O que é interessante também na tese do professor Eurípedes Funes é que ele trabalha com história oral, em que se pode discutir a questão das memórias de escravizados, porque ele parte de uma história que ele ouviu do pessoal que era do Quilombo Trombetas”, conta Edilza Fontes.
“Ele escutou todo o relato de onde eles vinham e da destruição do quilombo e a surpresa dele foi quando ele se deparou com essa mesma história nos documentos do Arquivo Público do Estado do Pará. Então, tem a documentação do Arquivo Público e a tese de doutorado do professor, o que casa a história oral que ele ouviu no presente, demonstrando a transmissão dessa memória, com a documentação. Quando a gente faz isso, a gente coloca dois tipos de documentos dialogando, um documento escrito e a memória”.
REGISTROS RAROS
Os documentos que integram o acervo do Arquivo Público do Estado do Pará são considerados raríssimos para quem com o tema das populações escravizadas no Brasil porque permitem que se entenda o relato dos próprios aquilombados. A professora Edilza lembra que o Quilombo Trombetas foi destruído e as pessoas que lá viviam foram levadas para Belém, onde passaram dois anos presas. “Essas documentações são justamente os depoimentos deles”.
O diretor do Arquivo Público do Estado do Pará, Leonardo Torii, lembra que essa documentação ficará exposta no Museu do Estado do Pará a partir desta segunda-feira (20), mas que, para além deste local, ela também circulará por escolas estaduais que trabalharão o tema em sala de aula.
“A documentação que está na exposição do museu, no Arquivo Público e em duas escolas estaduais são autos de perguntas, são vozes dos quilombolas. Mesmo essa documentação tendo sendo produzida pelo Estado, a gente consegue captar a linha de pensamento dos quilombolas ali presos, até então”, explica. “Em muitos depoimentos se observa que uma boa parte deles nunca experimentaram a escravidão porque já nasceram dentro do quilombo e um ou dois ressaltam isso: ‘nasci nas matas, não tenho senhor’”.
Naquele contexto de um país ainda marcado pela escravidão, por serem filhos de pessoas escravizadas, o Estado também os considerava escravos foragidos da lei, porém, o que se observa a partir dos relatos das pessoas presas a partir da destruição dos quilombos do Trombetas é que, para quem estava dentro dos quilombos, essa ideia era bem diferente.
“Para eles, dentro dos quilombos, não era assim. Eles experimentam uma liberdade, coisa que eles não têm fora do quilombo. Então, por isso que a gente pode considerar o quilombo como uma ilha de resistência. Dentro de país escravocrata, nós temos pequenas Ilhas onde esses negros escravizados fugidos experimentam essa liberdade”, avalia. “Então, é uma documentação importantíssima porque ressalta a voz a desses negros escravizados, coisa que a gente não vê com muita frequência dentro dos documentos porque a documentação do arquivo é produzida pelo Estado e o Estado é branco, escravocrata. Então, ver uma documentação como essa é algo para se preservar e divulgar”.
DIVULGAÇÃO PARA TODOS
Considerando, justamente, a relevância dessa documentação, a ideia da programação é divulgar esses documentos paras o maior público e mais variado possível. “Por isso que a gente veio para o Museu do Estado do Pará e também vai ser montada dentro do Arquivo Público e no dia 24 de novembro nós vamos para duas escolas públicas Estaduais, a Escola Rui Barbosa e a Escola Augusto Olímpio, no bairro de Canudos”, conta.
“A ideia é fazer com que os alunos, os professores também usufruam dessa documentação, então, o Arquivo Público já passou todo o material para as duas escolas, vários professores de história, geografia, estudo amazônicos, português e eles ficaram de trabalhar essa documentação com os alunos e esse dia que o Arquivo vai nas escolas é a culminância do Dia da Consciência Negra nas escolas”.
Construção que, à época da destruição dos quilombos, abrigava a sede do Governo, o Museu do Estado do Pará receberá a exposição que integra a programação. Para a diretora do Museu do Estado, Tamyres Monteiro, aponta que a ideia é estender o tempo de permanência dessa discussão para além do Dia da Consciência Negra, que não seja só no dia 20.
“A exposição vai ficar um mês aberta gratuitamente ao público, de terça-feira a domingo, de 9h às 17h e além dos documentos, nós também vamos ter uma tela do nosso próprio acervo e que trata justamente sobre religiosidade afro-brasileira”, adianta. “Já que estamos conversando sobre visibilidade e protagonismo desses povos, a gente aproveitou para também protagonizar a luta antirracista, o combate ao racismo religioso, ao racismo ambiental. Então, a ideia é unir toda essa discussão para que as escolas que frequentam o museu e o público no geral possam também é suscitar esse debate e dialogar conosco”.
Toda essa discussão ocupa, ainda, um espaço especial dentro do Museu do Estado, a Capela de onde saiu o primeiro Círio de Nazaré da história de Belém. “É uma muito importante para a gente poder falar sobre religiões afro-brasileiras. É um gesto justamente nesse sentido de igualdade racial, de discussão de direitos humanos e tudo isso a gente faz através da cultura, da educação e da ocupação dos espaços”.
FILME
Em outro espaço histórico da cidade, no auditório Eneida de Moraes, no Palacete Faciola, onde será exibido o curta ‘Benzedeira’. “A gente resolveu ampliar as linguagens para tentar aproximar um novo público para esse evento também, pegando a linguagem cinematográfica. Então, nós selecionamos o curta-metragem ‘Benzedeira’, que é um curta do Pedro Olaia com San Marcelo, que são os roteiristas, e que foi premiado inclusive no Festival Audiovisual de Pernambuco como melhor curta-metragem, concorrendo com mais de 15 produções”, explica Eduardo Moraes, que integra a comissão organizadora da programação.
“O filme faz exatamente essa leitura de reparação histórica ao mostrar um personagem que é homossexual, negro, mas que tem uma ligação direta com a questão da natureza justamente porque conhece as ervas, é uma benzedeira, cujo nome social era Maria do Bairro, e que curava as pessoas que a procuravam através das ervas para o corpo e da alma”.
O filme ficará em cartaz de 21 a 24 de novembro, em exibição especial para os alunos convidados da rede pública do Estado. “Estamos organizando, junto à Seduc, a vinda desses alunos, junto com seus professores, para que possam assistir e esse filme se torne também um recurso didático para posterior discussão em sala de aula nesse combate ao racismo”, finaliza.
PROGRAMAÇÃO
“Nasci nas matas, nunca tive senhor”, em alusão ao Dia da Consciência Negra
20 de novembro
10h – Abertura da exposição no Museu do Estado do Pará;
19h – Conferência da Palestra “Nasci nas matas, não tive senhor”, do professor Eurípedes Antônio Funes (UFC), no Palacete Faciola;
21 a 24 de novembro
17h – Exibição do curta “Benzedeira”, seguida de bate papo com os roteiristas San Marcelo e Pedro Olaia, no Palacete Faciola;
QUILOMBOLAS
Com mais de 135 mil pessoas, o Pará tem a quarta maior população quilombola do país, ficando atrás apenas dos Estados da Bahia, Maranhão e Minas Gerais. Os dados foram revelados pelo Censo do IBGE de 2022.