A manifestação física de uma séria confusão mental. Sentimentos como ciúme, desejo, desespero, excitação e medo deixam de ser algo abstrato e ganham vida diante de nossos olhos. Não existe um momento literal sequer na obra de Andrzej Zulawski, “Possessão”, de 1981. Tudo ali é orquestrado como um pesadelo, não obedece às leis naturais, desde a interpretação exagerada dos atores até a revelação do “monstro”. Uma estrutura sufocante, sim, repleta de metáforas e simbolismos. Mas totalmente conectada com o tema central do filme, um casal em crise.
“É duro viver junto”, diz, já na reta final da projeção, o personagem de Sam Neill para si mesmo. É um momento de compreensão, um dos poucos respiros que o cineasta concede ao espectador, pois a intenção nunca é explicar e sim complicar. Afinal, assim são os relacionamentos. Complicados. Não é à toa que, em entrevistas, Zulawski afirma ter se baseado em situações de seu próprio casamento para criar o roteiro. Quem nunca sentiu, por exemplo, que estava prestes a explodir de tanta dor por causa de outra pessoa? Se os conflitos internos ganhassem uma dimensão real, ultrapassassem a barreira do corpo, o resultado não seria nada bonito e ganharia tons surrealistas, como mostra “Possessão”.
Esse título, aliás, abre caminho para uma dupla interpretação. Num primeiro momento, pode-se atribuir tudo o que acontece a uma possessão demoníaca, levar para o lado do misticismo. A cena que Isabelle Adjani está parada diante de uma imagem de Cristo poderia ser um indício dessa visão, por que não? Mas, para mim, isso seria desprezar a força negativa e destrutiva de uma crise no relacionamento. Insegurança, amor, ódio e, acima de tudo, posse. Não é preciso nenhum ser de outro mundo para tornar essa combinação mais danosa. Além disso, a cena citada é, a meu ver, outro instante surreal, já que em vez de pedir ou até implorar ajuda, a mulher apenas geme, mostra como está o seu estado de espírito.
E como a questão é não aliviar, ainda existe um outro vértice nessa história. O amante. A partir do momento que é descoberto pelo marido, os dois travam um duelo, um jogo mental. Ora um sai por cima, ora o outro. Mas eles não sabem que disputam uma mulher que está a anos-luz de saber o que realmente quer. A briga entre eles é a parte mais “pés no chão”, digamos, do filme. Ela está em um plano diferente, mais elevado. Os homens, afinal, nunca alcançam o nível de complexidade feminina. Eles querem aquela mulher de volta, ter o relacionamento que sempre tiveram. Para ela, isso já não basta. Ela evoluiu, eles não. A solução encontrada por ela, foi, então, “criar” o homem ideal, um ser multifacetado, que poderia suprir todas as suas necessidades sentimentais. Esse é o “monstro”.
Existem ainda muitos outros detalhes que poderiam ser abordados, como o viés político da Alemanha dividida pelo Muro de Berlim ou o reflexo no filho do casal, mas o aspecto do relacionamento foi o que mais me tocou. O fato é que “Possessão” faz barulho, gera debate, nos faz pensar. Mas incompreensível, como foi tachado, ele não é. Não para quem já viveu intensamente uma relação a dois. Homens e mulheres nasceram para ficar juntos, mas não conseguem. A incomunicabilidade impera. Os momentos felizes, aos poucos, vão sendo substituídos por brigas e discussões. Até que a dor se torna forte demais para continuar. O que antes era “pra sempre”, acaba, morre. Mas a vida prega peças. Um dia, a paixão ressurge e tudo recomeça…