Costurar e bordar camisas não estava nos planos da artesã Maria da Cruz, de 75 anos. O interesse pela atividade veio com a chegada do curso “Camisa marajoara”, no município de Soure, na Ilha do Marajó.
“Me interessei de fazer só o curso, mas não pensei de fazer tanta camisa. No início, ficava só olhando. Só no segundo curso que eu comecei. Quando o pessoal me procura para ensinar, eu ensino. A gente não sabe o dia em que a gente vai, então, tem que ficar alguém pra fazer aquele trabalho, né?”, ressalta a artesã.
Dona Cruz, como é conhecida na cidade, conta que as encomendas chegam toda semana. As camisas marajoaras se tornaram presentes que viajam até para fora do Brasil. “O último pedido grande foi de 16 camisas, todas para dar de presente. Fico feliz quando vejo as pessoas usando e o meu trabalho reconhecido”, completa.
Arte que movimenta a economia – A empresária Rosilda Angelim tinha o sonho de montar uma loja com produtos que estampassem a cultura marajoara. “Eu não sabia bordar. Então fui atrás de quem fizesse esse trabalho. Não foi fácil, faltava mão-de-obra. Hoje, eu tenho nove bordadeiras. Tem uma aqui que ensinou a técnica para todas as quatro filhas”, conta a empresária.
O negócio cresceu e atualmente é referência na cidade. A empreendedora de origem quilombola do município de Salvaterra atende turistas de todos os lugares do mundo, mas diz que o mais traz orgulho é ser reconhecida pela própria comunidade. “Hoje, 60% do meu negócio é sustentado pelos próprios moradores de Soure. Acredito que a força do povo marajoara está nisso aqui”, ressalta Rosilda.
Herança dos povos originários – Copiado da cerâmica herdada dos povos indígenas que habitaram a região, o grafismo marajoara é uma reprodução fiel de achados arqueológicos. A rica coleção de desenhos, as “gregas” marajoaras fazem parte do legado deixado pelo padre italiano Giovanni Gallo, fundador do Museu do Marajó, em Cachoeira do Arari. A marca cultural dos povos originários é preservada e movimenta a economia dos municípios da ilha do Marajó.
“Ele pegou aqueles caquinhos que ganhou, onde tinham as tramas marajoaras do pessoal que estava fazendo as escavações nas suas casas, e ele vislumbrou isso de uma certa forma pra gente trabalhar, isso é muito importante. Ele tinha uma preocupação muito grande com as mulheres”, compartilha a artesã Elizabeth Moraes de Souza.
A Associação Educativa e Artesanal da Vila de Joanes (AERAJ), em Salvaterra, trabalha com mulheres vivendo e ensinando a arte marajoara. São dezenas de produtos feitos a partir da inspiração na coletânea de desenhos deixados nos livros do padre Gallo. “É o nosso pertencimento. Viver no Marajó, ser marajoara. A gente tem o maior orgulho disso. Quantas oportunidades a gente tá tendo por causa dessa arte marajoara!”, comemora Elizabeth.
Lembrança que traz orgulho – Técnico em eletrotécnica, Cacio Feio da Conceição lembra que o primeiro emprego que conseguiu foi trabalhando com o padre Giovanni Gallo, naquele que, futuramente, viraria o primeiro livro do religioso, em 1990, sobre a arte marajoara.
“O trabalho começou limpando o que a gente chamava de cacos, que eram os pedaços de cerâmicas. Os desenhos que nós encontrávamos, transferíamos manualmente para o papel quadriculado. Como não tínhamos computador, tínhamos máquina que a gente passava e enviava para a gráfica para fazer a montagem do livro. A partir daí as bordadeiras trabalhavam nos produtos como pano de prato e toalhas”, lembra Cacio.
História preservada – Os fragmentos das peças em cerâmica encontradas nas escavações e guardadas por padre Gallo estão expostas no Museu do Marajó junto com os primeiros bordados feitos em ponto cruz pelas artesãs da época.
Em fevereiro de 2023, a reabertura do espaço reconstruído pelo Governo do Pará completou um ano. A instituição, destinada à salvaguarda e difusão da cultura marajoara, faz parte do Sistema Integrado de Museus e Memoriais (SIMM).
“Lutamos muito para manter esse espaço preservado. Aquelas atitudes do Padre Gallo de fazer essas coisas, de copiar isso, preservar isso… Nossa, é uma emoção grande para mim, que vivo há mais de vinte anos após a partida do Gallo”, se emociona Otacir Gemaque, diretor do Museu do Marajó.