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O chamado da aventura resiste ao tempo em Indiana Jones

Escavando minhas primeiras memórias sobre a saga de Indiana Jones, tenho em “O Templo da Perdição” a lembrança mais nítida. Nela, o vilão Mola Ram crava a sua mão no peito do herói na tentativa de arrancar-lhe o coração. Bem ali pertinho, está a cena da perseguição nos carrinhos na mina. Sei, contudo, que o momento mais clássico quando se trata do arqueólogo-aventureiro é aquele em que ele foge da gigantesca pedra rolante em “Os Caçadores da Arca Perdida”. Assim como tenho absoluta certeza de que cada um que compartilhou, nesses mais de quarenta anos, as sensações de excitação, incredulidade e pavor causadas pelas peripécias de Indy em cinco filmes, tem experiências completamente pessoais e intransferíveis. E isso só comprova a vitalidade e importância cultural da franquia, cujo capítulo final está nos cinemas.

Para começo de conversa, “A Relíquia do Destino” é um filme necessário, pois o anterior, “O Reino da Caveira de Cristal”, seria um fecho melancólico, triste demais para uma trajetória tão rica, cinematográfica e sentimentalmente, de um personagem icônico. Basta dizer que a quarta aventura de Indiana Jones ganhou uma pesada sátira na cultuada série “South Park”, que colocou George Lucas e Steven Spielberg estuprando a sua criação, em um simbolismo bastante gráfico, que abraça a raiva sentida pelo constrangimento que fizeram Indy passar naquele filme, que, hoje, pode ser considerado apenas um desvio na rota. Rota que foi corrigida agora, com a redenção sendo alcançada e o dr. Jones fazendo as pazes com o seu público.

Harrison Ford até deu, recentemente, uma entrevista sobre as críticas recebidas em 2008 e disse que elas foram muito pesadas, defendendo a produção. O que não chega a ser nem um pouco curioso, já que o ator carrega há tanto tempo o chapéu e o chicote do personagem que é impossível não levar para o lado pessoal – mesmo com aquele filme cunhando a expressão “nuke the fridge”, que basicamente significa a falta de credibilidade em uma sequência, um evento que a torna completamente sem sentido; ou sobreviver a uma bomba nuclear se enfiando dentro de uma geladeira é verossímil para você? De todo modo, esse apego de Ford a Indy é o que o fez torná-lo tão peculiar e identificável. Basta ver uma silhueta do arqueólogo para começarmos a cantarolar a sua música-tema. Assim, vê-lo envelhecer – bem – é simplesmente um privilégio.

O rejuvenescimento digital de Harrison Ford é feito com extrema competência

Indiana Jones resiste, de fato, ao tempo, mesmo que este se mostre um adversário implacável. Se o novo filme já iniciasse com ele aos 80 anos, toda a bagagem que trazemos dos capítulos anteriores já seria suficiente para nos envolvermos e sentirmos a carga dramática dessa passagem dos anos. Mas “A Relíquia do Destino” faz melhor. Com técnicas impressionantes de computação, é feito o rejuvenescimento digital de Ford para a sequência de abertura do longa. E mesmo que a voz do ator entregue a idade real, você compra a ideia. É o chamado da aventura, de estar presenciando algo especial e fazer parte da história. Literalmente, já que, aqui, o artefato místico da vez é a Anticítera, máquina criada por Arquimedes e que teria o poder de detectar fissuras no tempo, tornando-o elemento crucial na jornada do herói.

A competição para tê-lo nas mãos é entre Indy e seus novos e velhos parceiros – com destaque para a sensacional Phoebe Waller-Bridge como a afilhada de Indy, dona de humor ácido irresistível; ah, e temos até uma espécie de Short Round, mas sem tanto carisma quanto Ke Huy Quan – e os também antigos antagonistas repaginados, os nazistas, tendo Mads Mikkelsen à frente, incorporando mais um tipo do mau em seu currículo, com a mesma eficiência de sempre. Como vemos, portanto, há em “A Relíquia do Destino” ecos de um passado glorioso enquanto traz, paradoxalmente, o frescor que um Indy mais velho proporciona, tendo de lidar com um sentimento de inadequação, de ele próprio ser considerado uma relíquia, pejorativamente falando, em 1969, em plena era da corrida espacial.

Um momento é significativo nesse processo: quando Indy é acordado ao som de “Magical Mystery Tour”, dos Beatles, que um grupo de jovens bota para tocar em um apartamento vizinho, fazendo até as paredes estremecerem pela altura da música. Indy se irrita, esbraveja e pega até um taco de beisebol, ameaçando partir para a violência na sua reclamação. Ele virou o arquétipo do homem comum, desempenhando o papel que lhe cabe naquele mundo: o de velhinho chato do prédio, entediante, que não gosta que os outros se divirtam. Mas basta interpretar superficialmente a canção do Fab Four que observamos que ela o tirou da cama com um propósito bem definido: desafiar os limites da realidade mais uma vez e embarcar em um último e maravilhoso passeio.

Indy reluta em aceitar esse convite. A vida lhe tomou demais, exigiu demais. Fora que o desinteresse de seus atuais alunos pela arqueologia contrasta com o brilho dos olhos de outrora. Olhos esses que agora estão voltados para o futuro, o homem na lua, e não para mistérios do passado, tão caros ao professor, em vias de se aposentar. Mas basta uma pessoa compartilhar genuíno conhecimento de sua disciplina que ele desperta da apatia e se entrega ao que está por vir – o que mostra também o quanto o tema do filme anterior foi trabalhado de forma errada, pois Indiana Jones pode e deve ter, sim, um pezinho na ficção científica, mas jamais mergulhar de cabeça. O clima de matinê, de aventura, essa sim é a sua base.

Indiana Jones tem a companhia de sua afilhada Helena nesta nova aventura, sendo interpretada pela maravilhosa Phoebe Waller-Bridge

É por isso que a Anticítera cabe como uma luva nessa história, já que trata exatamente da manipulação do tempo. A busca pela criação de Arquimedes rende, como não poderia deixar de ser, inúmeras cenas de tirar o fôlego, não tão criativas (James Mangold, que assumiu a direção neste capítulo, é bom, mas não é Spielberg), mas, ainda assim, dignas da franquia. Talvez a principal novidade seja a sequência subaquática, com as enguias substituindo as cobras, tão temidas pelo protagonista. Mas a força de verdade deste “macguffin” (objeto que move a ambição dos personagens) é permitir ao herói – ator e personagem, no caso – a possibilidade de contemplar a própria vida, seus feitos e o seu destino. Uma complexidade que, lá atrás, ninguém poderia prever, nem mesmo os críticos mais renomados.

Pauline Kael, por exemplo, julgava o Indiana dos primórdios, em “Os Caçadores da Arca Perdida”, como privado de personalidade: “O filme é um amálgama de suas loucuras – trama pela trama, dissociada de personagem ou drama”. Já Roger Ebert foi por um caminho mais elogioso, embora seguindo a lógica apontada por Kael: “Neste filme, Spielberg não tenta estudar a complexidade emocional da natureza humana; isso ele encontra em outros filmes. Em ‘Os Caçadores da Arca Perdida’ ele pretende duas coisas: produzir um excelente entretenimento e dar uma punhalada nos nazistas”. O que Ebert ainda viu como um nível de profundidade, não foi em Indy, mas em Spielberg, que, judeu, sentiu bastante os efeitos do holocausto e resolveu dar o troco aos nazistas do jeito que sabia – fazendo cinema.

Indiana Jones atingiu o pacote completo. É uma aventura escapista e nostálgica com direito a “viajar pelo mundo através do mapa”, desvendar quebra-cabeças e desarmar armadilhas em meio a uma louca perseguição? Sim, claro que é. Mas agora também é uma belíssima jornada de um homem que enfrentou a vida de peito aberto, com suas qualidades e defeitos, à mercê da sorte ou do infortúnio, que teve grandes conquistas e também fracassos retumbantes. E que, octogenário, prova que até o último suspiro ainda somos capazes de nos emocionar e ter experiências e conexões verdadeiramente profundas com aquilo que amamos e com quem amamos.

ONDE ASSISTIR:

  • Os Caçadores da Arca Perdida (1981): Disney+, Globoplay e Oldflix;
  • Indiana Jones e o Templo da Perdição (1984): Disney+, Globoplay e Claro TV+;
  • Indiana Jones e a Última Cruzada (1989): Disney+ e Globoplay;
  • Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal (2008): Disney+, Globoplay e Claro TV+;
  • Indiana Jones e a Relíquia do Destino (2023): nos cinemas.

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