Entretenimento

Iboru: Marcelo D2 faz álbum de samba com mente hip-hop

Novo álbum de D2, "Iboru" traz percussão de samba ganha novo verniz sintético, com graves de hip-hop e batidas e citações ao funk e ao trap FOTO: RODRIGO LADEIRA/DIVULGAÇÃO
Novo álbum de D2, "Iboru" traz percussão de samba ganha novo verniz sintético, com graves de hip-hop e batidas e citações ao funk e ao trap FOTO: RODRIGO LADEIRA/DIVULGAÇÃO

TEXTO: LUCAS BRÊDA/SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

“Para os caras do samba, minha levada é de rapper. Mas, para os do rap, minha levada é de samba do Rio de Janeiro”, diz Marcelo D2 sobre a maneira de encaixar seus versos numa música.

Não é de hoje que o músico se encontra entre o samba e o hip-hop. Depois de despontar com o Planet Hemp, banda de rap com rock, na década de 1990, D2 construiu a sua carreira rimando sobre bases com samples de música brasileira – entre muitas delas o samba – e batidas eletrônicas.

Agora, ele inverte a ordem. Em vez de um MC que insere o samba em sua estética, D2 agora está mais para sambista que usa elementos do rap. Essa é a tônica de “Iboru”, seu novo álbum, disponível nas plataformas digitais desde a última quarta-feira.

“Este disco para mim é uma roda de samba em frente a um sound system, uma feijoada dentro da caixinha de batata frita do McDonald’s”, diz. Sonoramente, isso significa que a percussão de samba ganha novo verniz sintético, com graves de hip-hop e batidas e citações ao funk e ao trap.

Mas não só. D2 agora faz samba com uma mentalidade de hip-hop. O álbum é permeado por interlúdios, samples de diálogos, trechos de outras músicas e um método de composição a partir de recortes.

Diferente de quando sampleou Fundo de Quintal em “Batucada”, de seu álbum de estreia, “Eu Tiro É Onda”, de 1998, agora há uma espécie de “autossample”. Ou seja, as gravações de D2 com banda foram cortadas, remontadas e ganharam outros timbres na produção de Nave, Mario Caldato Jr. e Kiko Dinucci.

Nas faixas, há participações ainda de Metá Metá, Mateus Aleluia e dos companheiros de Planet Hemp, BNegão e Pedro Garcia, além de uma seleção de sambistas cantando ou compondo, incluindo Zeca Pagodinho, Alcione, Xande de Pilares, Nega Duda, Mumuzinho, Diogo Nogueira, Arlindinho e Moacyr Luz.

Entre as influências de D2, estão Clementina de Jesus, os últimos discos de Tyler the Creator e Kendrick Lamar e os artistas plásticos Elian Almeida, Manuela Navas e Maxwell Alexandre. Mas a presença externa mais determinante no projeto talvez seja a do escritor e historiador Luiz Antônio Simas, coautor de duas músicas.

“A aproximação com ele foi essencial”, diz D2. “Tem muita gente que pensa como ele, mas ele verbaliza muito bem e abriu esse leque. Aí começa a ideia de como chegar a esse lugar que o Simas propõe.”

“Hoje, toda a música pop bebe do grave do hip-hop, de Anitta a Luisa Sonza. E o samba, por ter o surdo, demorou mais.”

O rapper se refere a uma conversa que eles tiveram em 2020, quando D2 fez o álbum “Assim Tocam Meus Tambores”, criado ao vivo em transmissões na internet na pandemia. “Hoje, toda a música pop bebe do grave do hip-hop, de Anitta a Luisa Sonza”, ele diz. “E o samba, por ter o surdo, demorou mais. Aí veio esse balanço da ancestralidade e do subúrbio que o Simas trouxe com tudo o que trago da cultura hip-hop.”

O conceito de ancestralidade de futuro, proposto pelo artista, também se relaciona com as religiões com matriz africana – ele se iniciou no ifá depois da morte de sua mãe, Paulete Peixoto, há dois anos.

“Tinha um medo de religião. Achava que ia me doutrinar e ia virar ovelhinha”, afirma. “Depois que minha mãe partiu, fiquei perdido. O ifá me deu conforto, de ter um padrinho para conversar, entender como a vida funciona, que a morte não é o final, a ancestralidade.”

Em “Iboru”, essa ideia surge como um diálogo com o tempo, embolando passado, presente e futuro. Na estética, ele combina o estilo esportivo do hip-hop com as vestimentas dos bambas e malandros do samba. No filme que acompanha o álbum, retrata versões jovens de Pixinguinha, João da Baiana e Clementina de Jesus sob a lente da atualidade.

FOTO: RODRIGO LADEIRA/DIVULGAÇÃO

Cantor chama proposta de “novo samba tradicional”

O próprio Marcelo D2 faz uma espécie de retorno no tempo, lembrando duas décadas atrás, logo antes de lançar “A Procura da Batida Perfeita”, álbum que o alçou à fama depois da passagem pelo Planet Hemp. Hoje, o trabalho não pode ser ouvido no streaming por uma desavença financeira entre artista e gravadora.

Assim como em seu disco mais célebre, D2 sente de novo que “descobriu uma parada”. “Pode não mudar o mundo, mas vai mudar o meu mundo. É o que estou chamando de novo samba tradicional.”

Também é daquela época o fim do Planet Hemp – decretado no camarim depois de um show no festival Mada, em Natal, no meio de uma entrevista para a MTV. “BNegão queria sair, Rafael queria sair. Pegamos uma garrafa de champanhe e falamos ‘é isso, cada um segue sua vida’.”

Neste ano, D2 também lançou com o Planet Hemp o primeiro álbum da banda desde o episódio no Rio Grande do Norte. Se “Iboru” imagina um futuro utópico, “Jardineiros”, da banda de rock, é um retrato da distopia -como o rapper trata o governo Bolsonaro.

“Pago o preço por ser alvo de uma extrema direita que é hipócrita”, diz. “Os últimos quatro anos foram difíceis. Só de me xingarem e falarem que são contra [mim], isso passa por mim para caramba.”

“Numa sociedade, não se pode tudo”, diz cantor, defensor do uso livre da maconha

D2 fala da luta por liberdade de expressão encampada pelo Planet Hemp – que acabou os levando à cadeia. Hoje, ele crê que tem de haver limites para o que pode ser dito.

“Falar que é um direito ter um partido nazista, acho que tem um limite de tudo”, diz. “Quero ver o cara sentar na minha frente e falar ‘eu quero ser racista’. Ninguém fala que quer ser racista. Eles querem liberdade para isso, mas ninguém tem coragem de falar. Eu tenho coragem de falar que quero liberdade para discutir as leis sobre drogas”, acrescenta. “Numa sociedade, não se pode tudo. É foda o cara que fala ‘fodam-se as leis e todas as regras’ estar falando isso agora, mas, quando a gente cai nesse lugar que afeta o outro, tem que ter um limite.”

Possivelmente o artista mais importante no ativismo a favor da maconha no país, D2 diz que nunca imaginou que a discussão sobre a droga evoluiria tão rapidamente – o Supremo Tribunal Federal se prepara para discutir a suspensão de um artigo da Lei Antidrogas.

“Sinceramente, não acreditava que ia fumar maconha na rua de Nova York”, diz. “Tem várias maneiras de se fazer isso [legalizar a droga] corretamente no Brasil. Mas uma certeza que eu tenho é que a proibição é o pior caminho.”

Hoje, mais do que o direito de falar sobre maconha, tráfico e sociedade, a busca de D2 é pela valorização da cultura que o formou. Cria do Andaraí, na zona norte carioca, ele cresceu vendo Mestre André, da Mocidade Independente de Padre Miguel, revolucionar a bateria de escola de samba, conviveu com gigantes no auge do Cacique de Ramos e se tornou amigo de Zeca Pagodinho e Bezerra da Silva.

Segundo ele, o samba desenvolvido no Cacique de Ramos, de Beth Carvalho ao Fundo de Quintal e dissidências, deveria ter o mesmo reconhecimento da tropicália ou da bossa nova.

“O Brasil dá pouco valor para essas coisas”, afirma. “Não foi para a TV. Ia a bossa nova, o tropicalismo, porque era uma coisa branca. Ficava bonito aos olhos dessa classe média. Não sei como o Cacique não foi para o mundo todo. A gente conhece, mas merece mais reconhecimento do que isso.”

 

Ouça

Iboru, que Sejam Ouvidas Nossas Súplicas – Marcelo D2

Onde: nas plataformas digitais

Produção: Nave, Mario Caldato Jr. e Kiko Dinucci

Gravadora: Pupila Dilatada