Maria Fortuna/Agência O Globo
Nazaré Tedesco, de ‘Senhora do destino’, Heleninha Roitman, de ‘Vale tudo’, Carolina Villar, de ‘Roda de fogo’. Não faltam exemplos que confirmam: se Renata Sorrah está no elenco de uma novela, pode apostar, vai roubar a cena. E está acontecendo de novo. Toda vez que ela aparece em ‘Vai na fé’ como a egoísta, vaidosa e sem filtro Wilma Campos, ex-atriz que se tornou ‘mãeneger’ do filho cantor, Lui Lorenzo (José Loreto), o público vai à loucura. Exemplo: quando repetiu a célebre frase que virou meme “esses gays querem me matar”, dita por Tanya (Jennifer Coolidge) na série “The White Lotus”. O assunto se tornou um dos mais comentados na internet.
Ao recriar cenas icônicas e usar várias referências do mundo real da dramaturgia num texto repleto de humor, ironia e inteligência, a personagem de Renata tem sido responsável por alguns dos diálogos mais divertidos da novela das sete, criada por Rosane Svartman. “Me serve, vadia!”, disse Wilma outro dia, evocando Nina, papel de Débora Falabella em “Avenida Brasil”. Outro momento que repercutiu nas redes.
Na entrevista a seguir, a atriz, de 76 anos, fala como encara o envelhecimento (“deveria ser compreendido como grande sorte, significa que a vida está indo longe”). Também analisa o que tem visto nos palcos e conta por que prefere interpretar papéis contraditórios.
P. Por que Wilma Campos mexe tanto com o público?
R. Ela estabelece um elo com os espectadores, com a lembrança que eles têm de outros personagens e obras. As referências acessam a memória afetiva e abrem portas para a curiosidade de conhecer autores que ela cita, Shakespeare, Gloria Perez, Edward Albee, Fassbinder, Eurípedes, Tchekhov, Janete Clair… Sem falar que Wilma é parte de uma novela de sucesso. Os temas abordados são urgentes, refletem as transformações de comportamento e de pensamento que estamos encarando hoje, lutas nas quais boa parte de nós está engajada. O elenco jovem é maravilhoso, diverso e talentoso, a direção, criativa e segura.
P. Qual é a importância de contribuir para jogar luz nessa memória?
R. É uma delícia representar cenas marcantes das novelas, dizer falas de personagens icônicos. Outro dia, no cabeleireiro, cruzei com a Gloria Perez, que me disse estar se divertindo com as referências às novelas dela. No Brasil, as novelas têm um papel central na cultura popular. Ao longo das épocas, elas trouxeram sempre à tona questões que precisavam ser colocadas diante dos olhos abertos da nossa sociedade.
P. Wilma é cheia de manias, imperfeita, geniosa. Isso abre um leque de assuntos legais de serem abordados, né?
R. Personagens como a Wilma espelham imperfeições humanas. Somos contraditórios, complexos. Aquelas mocinhas de antigamente, ingênuas, são insuportáveis.
P. O personagem do José Loreto é um homem, digamos, não tóxico. Interessante construir esse tipo de perfil, já que, antes, galãs precisavam esconder qualquer traço de feminilidade.
R. Nossa responsabilidade como artista é intimar a sociedade a se rever continuamente, ultrapassar preconceitos arraigados, arcaicos. Cada pessoa é o que é. E tem direito de viver a dimensão da sua liberdade sem ter que se enquadrar em padrões. Outros assuntos importantes abordados são a luta antirracista, essa emergência histórica, e a questão do abuso. A personagem da Sheron Menezzes representa tantas mulheres que se sentiram responsáveis por abusos que sofreram. Que acreditaram terem ‘dado motivo’ para a violência, porque tinham sido ensinadas a pensar assim. Que a mulher não é livre para usar a roupa que quiser, que uma saia curta justificaria um abuso. É uma ferida que o machismo impôs a muitas de nós. Estamos encarando isso, reivindicando justiça e usando as palavras certas: vítima é vítima e ponto final. A vítima nunca é culpada.
P. Wilma não é Renata, e Renata não é Wilma. Mas que reflexões essa personagem tem provocado em você?
R. Fico pensando o que eu diria a Wilma… Diria para fazer uma terapia, caminhar, ler os jovens poetas, olhar para o filho com o coração mais livre e cheio de amor, não julgar tanto. Tomar coragem e pedir, talvez, um neto a ele. Se jogar no cinema, começar um novo projeto para o teatro. Abraçar as causas que importam, a luta antirracista, levantar bandeiras coloridas. Respirar fundo e aceitar cada ruga do seu rosto, porque cada uma é a história da sua vida, de seus amores, suas tristezas, suas alegrias. Estou dando o que tenho de melhor para a Wilma, e ela me devolve dando um dos melhores personagens que já fiz.
P. O discurso de Wilma sobre etarismo foi além das questões da personagem. Falou sobre papéis da mulher na sociedade. Como ele dialoga com a Renata Sorrah mulher e atriz de 76 anos?
R. Achei muito importante a cena. E a repercussão imensa é um indicador importante também. Demonstra que o público está refletindo. Procurando, talvez, rever certos posicionamentos, certas noções equivocadas em relação a esse percurso natural da vida. Envelhecer deveria ser compreendido como uma grande sorte, na verdade. Principalmente, envelhecer com saúde. Significa que a sua vida está indo longe.
P. Concorda com o que disse Rosane Svartman, sobre a sociedade tratar o envelhecimento da mulher quase como se fosse crime?
R. Sim, as mulheres são mais penalizadas, vivemos em uma sociedade que ainda é machista. Mulheres, em qualquer profissão, são marginalizadas quando envelhecem. Secretárias, professoras, empregadas domésticas… Sofremos, sim, uma discriminação etária maior.
P. Além de “Vai na fé”, você também está no ar como Nazaré em “Senhora do destino”, reprisada no Viva, o que fez os memes da vilã voltarem com toda força. Aguinaldo Silva disse que queria ressuscitar a personagem, no que você respondeu: “Não mexe com quem tá quieto”. Não tem vontade de cutucar essa fera novamente?
R. Tenho orgulho das minhas escolhas profissionais. Sempre fiz personagens que achava importante fazer. Sempre me comprometi com eles, e o meu trabalho sempre esteve comprometido com as questões que eram importantes de serem debatidas. Acredito que as coisas acontecem quando têm que acontecer. No seu tempo. ‘Vale tudo’, por exemplo, era uma resposta contundente ao Brasil daquele momento, fim da década de 1980. Adoro os memes da Nazaré, adoro que ela tenha se transformado nesse ícone pop digital universal, fazendo parte dessa grande revolução tecnológica que chegou à vida de todos nós. Adoro quando a novela é reprisada e toda essa ligação que o público mantém com a personagem. Mas não sinto necessidade de ressuscitá-la.
P. Você é uma atriz estudiosa e séria. Mas quem te conhece nos bastidores diz que bagunça tudo com o seu bom humor. Lázaro Ramos contou que você e Adriana Esteves zoaram muito no set do filme ‘Medida provisória’. Na intimidade, você é, como se diz sobre alguns na escola, da ‘turma do fundão’?
R. Eu e Adriana já fizemos vários trabalhos juntas, nós, realmente, somos muito parecidas, temos humor, alegria… E nosso encontro no filme foi, como sempre, delicioso. Mas eu nunca fui da turma do fundão, gente. Eu tenho muito prazer, muita alegria em fazer o meu trabalho. Quanto melhor eu faço uma cena, mais alegre eu fico. Isso foi meu mestre, Amir Haddad, quem me ensinou. Em inglês, atuar é o verbo to play, que também significa jogar, brincar… Não me sinto da turma do fundão, porque, no meu ponto de vista, o pessoal do fundão não dá importância para ‘aula’. Eu dou importância para o meu trabalho, é uma grande felicidade para mim. Eu sou da turma que sente muito prazer em jogar.
P. Você estava na plateia em espetáculos como ‘Manifesto transpofágico’, da atriz transexual Renata Carvalho, e ‘Vista chinesa’, sobre um estupro real que aconteceu no Rio de Janeiro. Como avalia a gama de assuntos que o teatro brasileiro tem levado aos palcos?
R. Além desses dois espetáculos imperdíveis, ainda destacaria ‘Macacos’, escrito e interpretado por Clayton Nascimento, uma peça absolutamente transformadora. Como o teatro dever ser. Quando fazemos teatro, precisamos tocar nas questões fundamentais, abraçar as lutas incontornáveis de cada época.
P. Muito se falou sobre você ter levantado a mão quando Renata Carvalho perguntou à plateia do ‘Manifesto’ quem ali era bissexual. O que significou essa sua atitude?
R. Colocaram como se aquilo fosse uma declaração minha sobre bissexualidade. Não foi uma declaração de nada. Tudo que Renata perguntasse naquele momento eu levantaria a mão só para estar junto. ‘Quem é trans?’, ‘Quem é hétero?’. Ali eu era tudo. Estava emocionada com as mães, as irmãs de mulheres e homens transexuais que estavam lá. Levantei a mão no sentido de estar de braço dado com todes, todos, todas essas pessoas maravilhosas que estavam lá.