Cláudia Colucci
FOLHAPRESS
O médico e escritor Drauzio Varella completou 80 anos nesta quarta-feira (3) e diz que não pretende desacelerar o ritmo frenético das atividades, entre elas uma coluna na Folha de S.Paulo, atendimento voluntário na cadeia, palestras, participações em programas de TV, produção de material para o seu site, canal no YouTube e rede sociais. Confira na entrevista a seguir
P. Quando o sr. nasceu, a expectativa de vida era de 45 anos. Pensava que chegaria tão bem aos 80?
R. Não, não imaginava [risos]. Quando eu era menino, eu lembro que, quando se falava de pessoas de 50 anos, era [se referindo a] um velho. Os jornais davam manchete: ‘sexagenário é atropelado na av. São João’. Eram poucas as pessoas que chegavam aos 60 anos. Minha geração foi observando esse aumento estupendo da duração da vida. Naquela época, colocar uma pessoa de 50 anos na mesa cirúrgica, precisava pensar se valia a pena quando não era uma emergência. Hoje, a gente opera a pessoa com 90 anos e ela sai muito bem.
P. Seu pai morreu aos 80 anos. Essa idade te desperta algum temor ou reflexão em especial?
R. Claro que você se preocupa com isso. A geração do meu pai foi fumante, a minha também, mas a dele não parou de fumar como a minha. E ele foi tendo complicações. Eu parei de fumar aos 36 anos e, claro, eu acho que eu vou viver muito mais, mas não há garantias.
P. O sr. é ateu e já esteve à beira da morte, por causa da febre amarela. Naquela situação limite, apegou-se em algo espiritual, religioso?
R. Não, porque [ser ateu] é mais forte do que eu. Você não tem domínio sobre essas coisas. Elas são como são. A vida dos religiosos deve ser mais fácil. Eu rezo e vou resolver os meus problemas assim, vou me sentir amparado por alguém, pela figura de Deus. Mas quando isso não faz sentido prático para você, você não consegue fingir que está tendo esses princípios religiosos.
P. Se tivesse que escolher seus maiores acertos e maiores erros quais seriam?
R. Acertei primeiro escolhendo a profissão. Desde pequeno queria ser médico e nunca me arrependi dessa escolha. O segundo acerto foi quando escolhi a oncologia. No começo dos anos 1970, a ênfase da oncologia era a cirurgia e a radioterapia. A quimioterapia ensaiava os primeiros passos. Eu pude acompanhar esses avanços todos até o que temos hoje, o impacto da biologia molecular.
Outro acerto foi durante a epidemia de Aids. No Hospital do Câncer, eu era chefe do serviço de imunologia, e a Aids era uma doença que dava depressão imunológica, infecções oportunistas e câncer, que eram as coisas que mais me interessavam na medicina.
E, por causa da epidemia de Aids, entendi que a função dos médicos não é só atender os doentes, é também educar, contar para a sociedade as coisas que ele aprendeu, tentar fazer com que os outros não precisem passar por situações que a ignorância leva. E isso me dá muito prazer.
P. E os erros?
R. São inúmeros [risos]. Eu não fui um aluno brilhante. Entrei na faculdade e, como precisava trabalhar, comecei a dar aula em cursinho. Ficava na faculdade o dia inteiro, ia para o cursinho e dava aula até as 11h da noite, todos os dias, de segunda a sexta. No sábado dava aula o dia inteiro, e no domingo de manhã também.
Acho que as coisas erradas que eu fiz foram no exercício profissional. A medicina é uma profissão muito curiosa. Você trata cem doentes, cura 99, mas com um doente as coisas não dão certo por uma série de razões. Você vai esquecer os 99 e só vai pensar naquele doente em que as coisas não deram certo.
P. E quando isso mudou?
R. Com o passar do tempo, comecei a enxergar a verdadeira arte da medicina. Quando as coisas vão bem, você dá o medicamento, o doente fica bom. Qualquer médico é capaz de fazer isso. Mas como você acompanha a pessoa nos momentos finais da vida? O que você faz? O que você aprende com ela?
Mais tarde, com mais maturidade, isso me deu uma grande realização. Mais até do que curar os doentes. A figura do médico é crucial quando ele exerce o papel dele de verdade. Quando ele leva aqueles dados todos em consideração e tenta fazer com que aquele final tenha o mínimo sofrimento possível.
P. O sr. lida bem com a morte de pessoas próximas?
R. Acho que sim, mas isso começou lá atrás. Eu perdi minha mãe com quatro anos. Aí fomos morar com a avó paterna, e ela morreu quando eu tinha oito anos. Depois eu vivi isso tantas vezes no exercício da profissão que eu me preparei para essa realidade.
Eu perdi meu irmão mais novo, ele tinha 45 anos, era médico, a gente trabalhava junto. Eu tinha 47 anos, fui o médico dele. Se o meu irmão estivesse vivo, teria 78 anos, um velho como eu. E eu tenho a imagem dele com 40 e poucos anos. Ele era muito bonito. Passavam dez mulheres na rua, as dez olhavam para ele e nenhuma para mim [risos].
Quando você vai perdendo pessoas queridas, a felicidade possível, o teto que você consegue alcançar, é rebaixado. Não é que você vai ficar infeliz para o resto da sua vida, mas vai te faltar alguma coisa e isso é para sempre.
P. E quais são os próximos planos? Pretende desacelerar?
R. Não quero desacelerar. Não quero primeiro porque eu não sei. Sempre trabalhei muito. Tive fases da vida em que dizia: ‘tô trabalhando demais, que absurdo, preciso reduzir’. E não consegui. Não é agora com 80 anos que vou aprender. Por outro lado, tem uma premência por causa da idade. Não fiz tudo o que eu queria ainda.
P. O que ainda falta?
R. Quero melhorar essa comunicação, encontrar formas mais eficientes de transmitir informações, ler mais. Li há pouco tempo o “Anna Karenina”. Até tinha começado a ler no passado, mas tive que parar. Agora li com enorme prazer. Com a idade de hoje, pude entender melhor a estrutura do livro, aqueles personagens que o Tosltói descreve maravilhosamente bem. Quero me aplicar mais. Ter mais tempo para ler e escrever.
P. Ainda corre na região central de São Paulo? Sente-se inseguro com o aumento da violência?
R. Não corro tanto quanto eu corria porque a epidemia atrapalhou um pouco, mudaram os nossos costumes. Correr na rua não me preocupa pela violência, nunca tive problema nenhum. Ao contrário, conheço a população que vive no centro, os craqueiros, muitos me conhecem da cadeia. O que me preocupa mais agora é a condição das nossas calçadas.
P. O sr. e a [atriz] Regina [Braga] estão casados há mais de 40 anos. Qual o segredo para um casamento tão longevo?
R. Eu acho que é o respeito mútuo. É um privilégio de poucos. Ou as pessoas se separam rapidamente ou continuam a viver juntos, mas é aquele relacionamento que, de fora, você olha e diz: ‘que tristeza! A vida é isso?’ Vai dando um desencanto com a vida em comum. Mas é possível você ter uma relação decente com uma pessoa em que um não queira prejudicar o outro, que um veio na relação para ajudar o outro e vice-versa.