Cintia Magno
A saúde é um desafio coletivo e, como tal, demanda um envolvimento que vai além da atuação apenas dos profissionais de saúde, mas também da comunidade atendida. Foi partindo justamente deste conceito que a iniciativa de um médico e de uma arte-educadora resultou em um processo de transformação coletiva de comunidades ribeirinhas da Amazônia, especialmente da região Oeste do Estado do Pará, em prol da promoção de saúde.
Quando contratados pela Prefeitura de Santarém, ainda em 1983, para promover ações de saúde nas comunidades ribeirinhas do município, o médico sanitarista Eugênio Scannavino Netto e a arte-educadora Márcia Silveira Gama se depararam com a grande ocorrência de doenças que assolavam as comunidades tradicionais, apesar de serem preveníveis. À época, o atendimento chegava, de barco, para cerca de 800 comunidades que, em muitos casos, nunca haviam visto um médico na vida.
Após dois anos, porém, o trabalho foi interrompido com a mudança da gestão municipal à época e, para que as comunidades não ficassem desassistidas, os dois tomaram a iniciativa de criar uma instituição civil sem fins lucrativos que pudesse não apenas manter, mas ampliar as ações, dando origem ao Projeto Saúde e Alegria (PSA). Desde 1987, então, o projeto segue levando promoção de saúde a comunidades tradicionais localizadas na zona rural dos municípios de Santarém, Belterra, Aveiro e Juruti.
Médico sanitarista e fundador do PSA, Eugênio Scannavino lembra que, na época do início do projeto, uma das principais doenças que acometiam aquelas populações era a diarreia. “A gente chegava com o barco e eram filas enormes de pacientes, a maioria tinha muita verme, diarreia, anemia, doenças imunizáveis, ou seja, todas doenças preveníveis ou que não estavam diretamente relacionadas à distribuição de medicamentos e médico”, recorda, ao considerar que o cenário fez com que eles precisassem pensar em estratégias específicas de atendimento daquelas comunidades.
“Além do atendimento, a gente começou a fazer um trabalho grande de educação, com os dez mandamentos da higiene; a importância de tratar a água, especialmente; a importância de lavar as mãos antes de comer; usar chinelos; afastar os sanitários das casas; tampar os alimentos, enfim”.
COMUNIDADE
Percebendo a urgência de uma ação ampla de educação em saúde, o projeto não hesitou em identificar na própria comunidade os parceiros que eles precisavam para difundir informações básicas para que a população pudesse se prevenir de parte das doenças. “Começamos a fazer todo esse trabalho preventivo e como não dava para ter uma única pessoa para fazer a mesma educação para todas as pessoas em cada consulta, nós começamos a chamar a comunidade. Na época não existia a ideia do agente de saúde, então, começamos a chamar os jovens, as pessoas da própria comunidade para ajudar nessa triagem, para fazer a parte de educação”, lembra o médico.
Através desse trabalho preventivo se alcançou uma diminuição muito grande, quase imediata, da mortalidade infantil e, com isso, as comunidades começaram a perceber que, a partir da mobilização deles próprios, era possível mudar a realidade local. De forma coletiva, portanto, o projeto foi se ampliando.
“As comunidades passaram a se mobilizar pela saúde e perceberem que elas podiam ser donas de seus destinos se elas fizessem a sua parte também. A gente viu muito isso na pandemia, agora: se você não usa máscara, você contamina o outro; se você faz cocô no rio, você contamina o próximo, então, saúde é um desafio coletivo e as pessoas começaram a participar desse desafio. A partir daí surgiram novas prioridades, como fazer hortas caseiras, para fazer a recuperação nutricional infantil”, aponta Eugênio Scannavino. “Todo esse trabalho foi se desenvolvendo e passando para outras coisas, como a mobilização da juventude, educação comunitária, trabalho com crianças, com as gestantes, depois agricultura, economia da floresta, geração de renda pela bioeconomia, enfim, a saúde foi o que desencadeou todos os demais programas”.
ATENDIMENTO
Concomitante ao trabalho educativo, o projeto ainda tinha um grande desafio para resolver, a necessidade de ampliação do atendimento médico. E foi dessa necessidade que surgiu um modelo desenvolvido pelo PSA que, mais tarde, veio a se tornar referência para o próprio Sistema Único de Saúde (SUS).
“O sonho sempre foi a construção de um barco hospital e surgiu uma oportunidade, a partir de uma instituição holandesa. A partir daí a gente começou a construir um modelo de barco-hospital adaptado para a região. Então, foi feito um modelo náutico com tecnologia bem avançada holandesa, mas também com tecnologia regional e foi feito o primeiro barco que foi chamado de Abaré, um nome escolhido pelas comunidades e que, em tupi, significa ‘amigo que cuida’”, recorda Eugênio.
“Com esse barco, com todos os equipamentos, desde consultório médico, odontológico, ginecologia, sala de enfermagem, laboratório, semi-intensivo para fazer a estabilização dos pacientes, começamos a implantar esse trabalho nas comunidades em que a gente atuava com todas as comunidades da Resex Tapajós-Arapiuns, as comunidades da Floresta Nacional do Tapajós e as comunidades ribeirinhas dos municípios de Aveiro e Belterra”.
Com o barco, foi possível fazer um trabalho continuado de atendimento médico, onde o barco-hospital retornava a cada 40 dias na mesma comunidade, com os pacientes sendo vistos permanentemente pelo médico. Já em 2008 o trabalho garantiu resultados tão bons que chamou a atenção do Ministério da Saúde.
“Em 2008 a gente tinha conseguido indicadores muito bons que já tinham batido os indicadores do Brasil e da Região Norte, com cobertura de agentes de saúde 100%, cobertura de pré-Natal e vacinal acima de 90% e com custo mais baixo e adaptado para a Amazônia. Então, se criou um modelo de barco de saúde para atendimento de populações isoladas na Amazônia”, lembra o fundador do projeto.
“A partir daí, em 2010, com o Governo monitorando o barco-hospital por três anos, conseguimos ajudar a construir uma portaria do Programa de Saúde da Família Fluvial que foi implantado em 2010 pelo Ministério da Saúde e esse passou a ser um modelo do SUS. Então, o barco passou a ser financiado e sustentado pelo SUS e qualquer município com populações ribeirinhas poderiam pedir um barco e fazer o mesmo tipo de modelo”.
Com isso, Eugênio Scannavino conta que o barco que era utilizado pelo PSA foi repassado para a Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) para que servisse, também, à ações de formação de futuros profissionais de saúde. “A partir daí ele se tornou um barco-escola, um barco de saúde, pesquisa e ensino. O que é muito legal porque recebe residentes de várias universidades, promove a interiorização da medicina, o médico residente quando vai lá tem a experiência de atender o paciente no local de moradia dele”.
Com uma atuação ainda muito presente, hoje o Projeto Saúde e Alegria segue desenvolvendo o mesmo trabalho que levou à sua criação, há mais de três décadas, só que com abrangência ampliada. Entre os desafios atuais assumidos pela ONG está a promoção do atendimento de telemedicina.
“Houve um estudo recente onde três a cada quatro habitantes das comunidades se referem à saúde como a sua maior prioridade, então, são populações muito excluídas, os municípios são do tamanho de países, com populações muito isoladas e os municípios não têm capacidade instalada, equipamentos, não têm recursos. O custo de saúde na Amazônia é muito maior do que o custo em qualquer lugar do Brasil”, avalia.
“Então, tem que haver uma mudança no padrão de financiamento, tem que haver, também, comunicação e conectividade para que o enfermeiro ou agente de saúde possa pedir ajuda e, se possível, que é o que a gente está tentando fazer agora, telemedicina em larga escala”.