BELO HORIZONTE, MG (FOLHAPRESS) – Mãe e filha faziam compras em uma mercearia próxima de Mashhad, cidade sagrada no Irã. Elas esperavam na fila, enquanto o dono da loja cobrava de outros três clientes.
A cena, apesar de corriqueira, se destacou por uma questão: as duas estavam com os cabelos à mostra, contrariando a lei do Irã que obriga mulheres a vestirem o hijab. Na mesma cena, aliás, uma terceira mulher usava o véu islâmico.
Um homem, que aparentemente também fazia compras na mercearia, começou então a discutir com as duas mulheres. De acordo com o registro de câmeras de segurança, as duas o escutava, mas ele aparentava ficar com cada vez mais raiva. Até que o homem pega o que parece ser um pote de iogurte e joga a substância sobre as cabeças das duas mulheres, sujando de branco os seus cabelos escuros.
A ação gerou espanto em quem estava na mercearia na última quinta-feira (30), e o dono da loja aparece no vídeo correndo para empurrar o agressor para fora do estabelecimento.
O ataque com iogurte contra as duas mulheres, no entanto, evidencia um racha mais profundo no país de maioria muçulmana: de um lado, há quem defenda a liberdade das iranianas em frequentar lugares públicos sem usar o hijab ou outros tipos de véus islâmicos; do outro, há aqueles alinhados à retórica tradicionalista do regime iraniano.
A cena repercutiu na mídia estatal e nas redes sociais, e, naturalmente, motivou discussões entre os dois setores da sociedade iraniana. O alvoroço foi tão grande que o presidente do país, Ebrahim Raisi, manifestou-se neste sábado (1º). “O hijab é hoje uma questão legal”, disse, sem deixar dúvidas acerca de sua posição no embate ideológico. Raisi acrescentou ainda que as pessoas que acreditam na necessidade do uso do véu islâmico devem persuadir as que não acreditam -uma espécie de aceno, ainda que indireto, ao homem que sujou as duas mulheres com iogurte na mercearia.
Mas o regime foi além da retórica e puniu todos os envolvidos no episódio: as duas mulheres foram detidas por cometerem “ato proibido”, e o agressor, por “cometer atos injuriosos e perturbar a ordem”. Já o dono da loja recebeu notificações para que “cumpra os processos legais de acordo com os regulamentos em vigor”. Há relatos de que sua loja chegou a ser temporariamente fechada em rezão do episódio, e ele deve ser intimado a prestar esclarecimentos à Justiça.
O chefe do Judiciário, Gholamhossein Mohseni Ejei, ameaçou processar “sem piedade” mulheres que aparecem em público sem véu, informou a mídia iraniana. “Revelar [os cabelos] é equivalente a inimizade contra nossos valores”, afirmou.
Paralelamente, o Ministério do Interior divulgou um comunicado descrevendo o véu como “um dos fundamentos civilizacionais da nação iraniana” e “um dos princípios práticos da República Islâmica”. A pasta também reforçou que não haveria recuo ou tolerância sobre o assunto.
Sob a lei islâmica do Irã, imposta após a revolução de 1979, as mulheres são obrigadas a cobrir seus cabelos e a usar roupas largas para disfarçar suas silhuetas. As infratoras enfrentam repreensão pública, multas ou prisão.
Em setembro de 2022, porém, eclodiram protestos massivos no Irã após a morte sob custódia policial de Mahsa Amini, uma mulher curda de 22 anos presa por supostamente descumprir o código de vestimenta do país. Centenas de manifestantes e dezenas de policiais foram mortos durante as manifestações. Outros milhares foram presos. Além disso, o regime iraniano condenou ao menos 20 manifestantes à pena de morte. Alguns foram enforcados em praça pública.
Ainda assim, mulheres ainda são amplamente vistas sem véu em shoppings, restaurantes, lojas e ruas de todo o país. Vídeos de mulheres sem véu resistindo à polícia também inundaram as redes sociais nos últimos meses.
Paralelamente, ainda que em menor escala, iranianos que apoiam a revolução islâmica também se organizaram. Em vários dos casos, os manifestantes seguem a retórica do regime e culpam grandes potências ocidentais pelos embates no país.