Pará

ENTREVISTA: 'A violência contra a mulher deve ser enfrentada em diversas frentes'

a advogada Gabrielle Martins Silva Maués procura descortinar o problema e apontar os gargalos históricos que impedem que mulheres vulneráveis e submetidas a violências cotidianas denunciem seus agressores e peçam socorro. Foto: Divulgação
a advogada Gabrielle Martins Silva Maués procura descortinar o problema e apontar os gargalos históricos que impedem que mulheres vulneráveis e submetidas a violências cotidianas denunciem seus agressores e peçam socorro. Foto: Divulgação

Luiz Flávio

O 8 de Março, mais que um dia para celebrar, serve principalmente para lembrar também que as mulheres necessitam dispor de uma rede de proteção que funcione de fato, com delegacias especializadas em todas as cidades, onde possa ser atendida e confortada, já que não é fácil quebrar o silêncio e romper a rotina de humilhações e agressões que milhares de mulheres são submetidas no Brasil a cada dia.

Dados do IBGE apontam que as mulheres formam quase 52% da população brasileira. Mas o desafio das mulheres é cotidiano no combate à desigualdade, à violência e na busca por direitos. Estudo da Agência Patrícia Galvão mostra que 76% das mulheres brasileiras já sofreram assédio ou violência no trabalho. Elas são mães, avós, filhas, estudantes, domésticas, administradoras de empresas, jornalistas, médicas, enfermeiras, cientistas, pesquisadoras, professoras… Apesar de serem maioria, muitas dessas mulheres sufocam numa teia de violências difícil de ser rompida.

Na entrevista a seguir, a advogada Gabrielle Martins Silva Maués procura descortinar o problema e apontar os gargalos históricos que impedem que mulheres vulneráveis e submetidas a violências cotidianas denunciem seus agressores e peçam socorro.

“O problema da violência contra a mulher é muito complexo e possui inúmeros fatores, então é fundamental ser enfrentado em diversas frentes, principalmente no âmbito da conscientização”, afirma.

Sócia do escritório Moura, Furtado & Maués Advogadas Associadas, primeiro escritório feminista, antirracista e antiLGBTQIAPN+fóbico de Belém, Gabrielle também é Conselheira da Seccional OAB-PA e presidente da Comissão das Mulheres e Advogadas da ordem, além de ser pós-graduada em Advocacia Feminista e os Direitos das Mulheres:

Pergunta: A Lei Maria da Penha não foi criada para punir os homens, mas para proteger as mulheres da violência doméstica e punir os agressores. A maioria dos assassinatos de homens ocorre nas ruas ou no bares, enquanto que os homicídios contra as mulheres normalmente acontecem dentro de casa, praticados pelos seus companheiros, ou seja, “por quem deveria protegê-las”. Essa Lei completou 16 anos. Precisa ser reformulada?

Resposta: A Lei Maria da Penha, de forma muito justa, é considerada uma das quatro melhores leis do mundo dessa natureza por organismos do Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos. E justamente porque ela possui caráter de conscientização e prevenção, orientações sobre uma atuação conjunta e qualificada da rede de enfrentamento e acolhimento à mulher em situação de violência e, principalmente, as medidas protetivas, que são um instrumento crucial de proteção às mulheres em situação de violência doméstica.

Então, não se trata de reformulação da lei, mas de sua efetivação. Por exemplo, prevê a educação de gênero nas escolas e a competência híbrida das varas especializadas de violência doméstica, isto é, que atuem tanto na seara penal quanto na cível, e ambos ainda não são uma realidade em nosso Estado.

O que poderia ser alterado na legislação para dar às vítimas uma proteção maior, sem a necessidade de elas terem a obrigação de quebrar o silêncio, denunciar e ainda assim ir atrás de todas as provas possíveis para punir seus agressores ou então obter da justiça uma medida protetiva?

A Lei é bastante completa, heterotópica, pois traz dispositivos de diversas áreas do Direito, por exemplo de Família, Previdenciário, Penal, e principalmente as medidas protetivas. Então a proteção da mulher já está resguardada na Lei Maria da Penha. Falta realmente a efetivação do texto legal. Há decisões de Cortes Superiores que reconhecem que a medida protetiva independe do registro de ocorrência, uma vez que seu caráter é de proteção. Entretanto, nem sempre é possível este acesso na prática.

E isso acaba impedindo as denúncias, pois muitas mulheres não querem ver os pais de seus filhos respondendo a um processo criminal, mas tão somente se ver livres daquelas agressões sofridas. Outra iniciativa importante é uma fiscalização mais consistente do cumprimento das medidas protetivas, há estados que adotam tornozeleira eletrônica para os agressores, o que facilita a prevenção de novos crimes. E sem dúvida, uma melhor estrutura da rede, para atender toda a demanda na forma e prazo adequados, faria bastante diferença na efetivação da proteção já prevista na lei.

Quais os principais obstáculos que as mulheres enfrentam hoje para denunciar e levar adiante as situações relacionadas a ameaças, agressões e outros crimes praticados contra elas?

São muitos os canais de denúncia, além da Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (DEAM), qualquer delegacia pode atender casos de violência doméstica. Há a Defensoria Pública, o Ministério Público e as próprias organizações da sociedade civil que prestam assistência nesse âmbito. Porém precisamos refletir sobre quem consegue acessar esses canais: quais mulheres têm acesso a esses espaços e mesmo às informações devidas? A Lei Maria da Penha é realmente louvável, mas ela contempla mulheres negras, periféricas, ribeirinhas?!?

Quando se fala em violência doméstica, se fala de dependência econômica – não como causa, mas como fator de risco. A vulnerabilidade destas mulheres, econômica, social, muitas vezes afetiva também, é um impeditivo para as denúncias e prosseguimentos. E além disso, a Lei Maria da Penha prevê uma atuação especializada e humanizada da rede de enfrentamento e acolhimento à mulher em situação de violência, contudo, nem sempre isso ocorre na prática, por ausência de estrutura adequada e de recursos humanos. É fundamental pensar no pós-violência – após a denúncia, como essa mulher será acolhida e, por exemplo, inserida ou reinserida no mercado de trabalho?

Na sua opinião ocorrem avanços nos últimos anos relacionados à proteção da mulher ou ainda estamos longe do ideal?

Ainda estamos longe do ideal, pois há um foco demasiado na punição e o Direito, especialmente o Criminal, não pode ser tratado como meio de empoderamento de mulheres. Esse populismo penal acaba prejudicando o debate. Obviamente, há um significado em criminalização de uma conduta, que passa a mensagem de que não há tolerância estatal com aquela violência, mas isto não é suficiente.

O problema da violência contra a mulher é muito complexo e possui inúmeros fatores, então é fundamental ser enfrentado em diversas frentes, principalmente no âmbito da conscientização, com a visibilidade aos temas e o reconhecimento das desigualdades de gênero, que normalizam a violência contra a mulher e ratificam a construção social de uma superioridade masculina.

Também são fundamentais as políticas públicas destinadas às mulheres, que devem apresentar perspectiva interseccional de gênero, contemplando assim a diversidade de mulheres e permitindo que possam ter seus direitos efetivados, com os devidos recursos necessários para tal. A garantia de creches permite, por exemplo, que a mulher possa trabalhar e assim ter autonomia financeira, tornando-se menos vulnerável ao ciclo da violência.

É uma situação difícil, mas qual seria a forma mais segura das mulheres denunciarem seus agressores nos dias atuais sem correrem risco de agressões maiores ou mesmo de serem mortas? Chamadas para o 180? Novas Leis mais duras e punitivas?

O 180 é para uma situação não emergencial, e acaba sendo mais para fim de registro da situação, mas não deixa de ser essencial, pois sem dados não é possível fazer política pública. Numa situação de emergência, deve ser acionado o 190. Sem dúvida, como estratégia de segurança e proteção às mulheres, as medidas protetivas são fundamentais e com o auxílio da defensoria pública ou de advogada (o) particular podem ser requeridas sem a exigência do boletim de ocorrência.

E precisamos falar em plano de segurança, que é exatamente um plano com estratégias a serem adotadas pela mulher em caso de agressão, para reduzir os riscos, podendo ser citadas: a precaução de separar seus documentos pessoais e até uma muda de roupa, bem como dos filhos, em local seguro e de fácil acesso caso precise deixar o lar rapidamente; evitar locais como cozinha e banheiro, que possuem itens que podem ser usados na agressão; ter um contato de confiança que possa ser acionado, até com uma senha combinada, caso precise de ajuda, entre outras.

Qual a importância da Comissão das Mulheres e Advogadas da OAB e como ela vem atuando no combate à violência contra as mulheres aqui no Estado? Como uma vítima pode denunciar na comissão?

A Comissão é o braço da OAB nas pautas relativas à defesa de direitos das mulheres, com fundamento no Plano Nacional de Valorização da Mulher Advogada, provimento do Conselho Federal da OAB, que possui eixo voltado ao enfrentamento à violência doméstica. A atuação é de caráter institucional, tanto como representante da sociedade civil, como na missão de fiscalizar e conscientizar. A CMA realiza palestras, rodas de conversa, audiências públicas, bem como participa de eventos dessa natureza promovidos pela rede de enfrentamento e acolhimento à mulher em situação de violência, por escolas, universidades, órgãos do Sistema de Justiça e outros.

Também representa os interesses das mulheres advogadas, combatendo o assédio moral e sexual no exercício da profissão, por exemplo, e realizando campanhas pelo fim da violência de gênero nos processos judiciais. As demandas chegam à Comissão por diversas vias, tanto por contato direto com suas integrantes ou com a OAB, ou encaminhadas pela rede de enfrentamento e acolhimento à mulher em situação de violência, entre outras. Além disso, a Comissão participa frequentemente de ações de cidadania organizadas por órgãos da Administração Pública, em que fornece orientação jurídicas sobre violência às mulheres presentes. Há um canal específico para violência doméstica, pelo qual são dadas orientações jurídicas a mulheres vulneráveis, o e-mail [email protected] . Mas também podemos ser contatadas no e-mail [email protected] e no instagram @cmaoabpa.