Liston era capaz de amputar uma perna em menos de trinta segundos, e, para manter as duas mãos livres, era comum segurar a faca ensanguentada entre os dentes enquanto trabalhava. Sua velocidade era tanto uma dádiva quanto uma maldição.
Certa vez, ele decepou acidentalmente o testículo de um paciente, junto com a perna que estava amputando. Seu contratempo mais famoso ocorreu numa operação durante a qual ele trabalhou tão depressa que decepou três dedos de seu assistente e, ao trocar de lâminas, cortou o casaco de um espectador.
O assistente e o paciente morreram de gangrena, pouco tempo depois, e o pobre espectador faleceu no local, em razão do susto. Dizem que foi a única cirurgia na história a ter uma taxa de mortalidade de 300% – “Medicina dos Horrores: A história de Joseph Lister, O Homem Que Revolucionou O Apavorante Mundo Das Cirurgias Do Século XIX”, de Lindsey Fitzharris
Robert Liston (1794 – 1847) foi um cirurgião escocês do século 18 conhecido por sua extraordinária habilidade em operar, em uma era anterior aos anestésicos e quando a velocidade fazia diferença em termos de dor e sobrevivência.
Ao longo do tempo a medicina evoluiu consideravelmente, e continua a evoluir, buscando meios diagnósticos e terapêuticos que possam atender às dores e sofrimento dos pacientes.
Certa vez ouvi de um grande mestre que “quem tem tempo, tem história”. Assim como não existe mestre melhor do que “o tempo” para moldar a história.
Nossa reflexão de hoje se passa no século 20, o ano era 1995, início do segundo semestre do quinto ano do curso de medicina da turma da Universidade do Estado do Pará que se formaria em 1996. O cenário era o auditório do Hospital dos Acidentados, ou Clínica Maradei, como era amplamente conhecido, referência aos irmãos médicos traumato-ortopedistas que o fundaram: Dr. Humberto e Dr. João Maradei.
Era a aula inaugural de Clínica Cirúrgica II, e Dr. João Maradei, titular da cadeira, diante de uma sabedoria e simplicidade digna das grandes mentes, se dirigia aos alunos fazendo uma analogia:
“Se eu convidasse um açougueiro para passar uma semana em nosso centro cirúrgico aprendendo como amputar uma perna, em sete dias ele seria capaz de amputar o membro tão rapidamente, ou até bem mais veloz, do que nossos melhores cirurgiões do hospital”.
Mas “ser médico”, completava Dr. João, “é muito mais do que simplesmente saber amputar uma perna”.
Para aqueles que conseguiam deixar de lado a excitação causada pela ideia de ver de perto a maravilhosa evolução que o tempo foi capaz de produzir em relação aos avanços tecnológicos do ato cirúrgico (às vésperas do século 21, as cirurgias agora contam com anestesia, assepsia e equipamentos mais avançados), a reflexão proposta pelo professor era muito forte: – o que é “ser médico”?
Escritos antigos, como os do filosofo grego Platão (428a.C. – 348 a.C.) são abundantes em referências à medicina, doutrina médica, médicos e suas habilidades, médicos e pacientes.
Para Platão, a medicina era uma arte. “Uma arte que atende à natureza e constituição do paciente e tem princípios de ação e razão em cada caso”.
A “arte”, nesse contexto, não tem relação com as “artes plásticas”, mas está mais próxima do que entendemos hoje como artesanato.
Aluno de Platão, o filósofo grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), deixou clara a distinção entre saber o que fazer – habilidade prática, que representa arte; e saber por que você faz isso – o conhecimento que representa a ciência.
A prática – o que realmente é feito – encontra sua explicação e justificativa na ciência.
Alonzo Palmer (1815-1887) em um tratado sobre a ciência e a prática da medicina mostrou, em 1883, o pensamento contemporâneo: “qualquer ciência (incluindo a medicina) determina e expressa de maneira ordenada fatos e princípios; uma arte os aplica”.
A ciência é o “conhecimento organizado de todas as circunstâncias relacionadas à saúde do homem”, enquanto a arte aplica esse conhecimento ao alívio ou prevenção de doenças.
Com o grande aumento do conhecimento, em especial a partir do século 19, acentuaram-se as distinções entre a arte da medicina e a ciência da medicina, assim como as diferenças entre os praticantes.
O bom médico sabe o que fazer e também sabe por que faz isso – ele conhece a teoria por trás do tratamento.
Outros podem ser hábeis de uma maneira prática, mas não conhecem a teoria médica. Eles são os empíricos. O que chamamos de empirismo na medicina, Platão chamava de opinião.
A opinião pode estar certa, mas pode ser uma forma de arte muito baixa, a menos que tenha uma base racional.
Hoje, é prática médica “não científica” alcançar um resultado bem-sucedido sem saber como ou por quê. Isso porque existe uma grande diferença entre a descrição do resultado e a descrição dos mecanismos subjacentes, capazes de produzir o resultado.
Reconhecendo que a medicina tem um pé firmemente plantado no campo da arte e o outro enraizado na ciência, o que a arte da medicina realmente significa e como ela se relaciona com a ciência da medicina hoje?
E sendo a arte da medicina uma constante e a ciência uma variável em constante mudança, como tal pensamento pode impulsionar o progresso da ciência médica?
Já no século 21, depois de quase 30 anos, a reflexão feita pelo Dr. João Maradei ainda ecoa na cabeça de seus alunos. Bem, pelo menos, na cabeça de um deles.