Vânia Torres destrincha em livro olhar do jornalismo da TV Globo sobre amazônidas

Fruto da tese de doutorado de Vânia Torres, que é jornalista com experiência em TV, livro evidencia preconceitos e apagamento dos sujeitos nos discursos sobre a região FOTO: SUELY NASCIMENTO/DIVULGAÇÃO
Fruto da tese de doutorado de Vânia Torres, que é jornalista com experiência em TV, livro evidencia preconceitos e apagamento dos sujeitos nos discursos sobre a região FOTO: SUELY NASCIMENTO/DIVULGAÇÃO

Aline Rodrigues/Diário do Pará

A jornalista e pesquisadora Vânia Torres lança hoje, 2, às 17h30, no Instituto Histórico e Geográfico do Pará, o livro “À sombra da floresta: a Amazônia no jornalismo de televisão”, com sessão de autógrafos em meio à apresentação dos músicos Nego Nelson e Tiago Amaral.

A publicação nasceu da tese de Vânia no doutorado em comunicação pela Universidade Federal Fluminense e de uma inquietação. Ela, que dedicou 16 anos ao jornalismo televisivo – onde atuou como repórter, editora e apresentadora -, ao pensar num tema para a pesquisa, sempre tinha o incômodo no modo como jornalistas falavam sobre a Amazônia.

Questionava que Amazônia era essa, de onde decorria essa imagem, que construção discursiva era essa? O resultado, diz a autora, pretende “contribuir para esse debate sobre a Amazônia, pensar sobre a Amazônia para nós, para quem é de fora”, completando que é um livro para jornalistas, educadores e todos aqueles que se interessem pela temática.

Vânia se debruçou sobre quatro séries exibidas pela TV Globo entre 2007 e 2010. “Minha prioridade não era olhar para o modo como a floresta era vista, mas olhar os sujeitos, o modo como os entrevistados, aqueles que o jornalismo chama de ‘personagens’, o modo como eles aparecem no texto”, explica.

A partir da análise do discurso, ela identificou três grandes linhas discursivas que apareciam em todas as quatro séries estudadas. Discursos que a pesquisadora chamou de “nacionalidade”, “salvacionista” e “colonialidade”.

“No discurso da nacionalidade, observo como a Amazônia é inserida no contexto nacional – ‘a Amazônia é nossa’, ‘precisamos preservar a Amazônia’, esse olhar da Amazônia como sendo propriedade de todos. E esse discurso salvacionista – ela precisa ser salva, mas é sempre a floresta, o que está em questão são os recursos da floresta, a flora, a fauna, são os recursos do subsolo. O sujeito é invisibilizado. Associo isso aos mesmos discursos a que a gente assiste desde a conquista da América, desde a invasão europeia nessa região, quando estavam aqui os povos originais”, descreve.

“Por isso que eu falo de um conceito que se chama colonialidade, que é ver ainda hoje os resquícios dessa herança da colonização, olhar para cá como se ainda fossemos colônia, nesse caso colônia do Brasil”, conta a pesquisadora, lembrando que o Grão-Pará foi construído, historicamente, apartado do Brasil até a independência. Depois da independência, o Império atentou que precisava trazer o Grão-Pará para mais “perto”.

“REGIÃO DO FRACASSO”

Mas a região ainda foi palco da Cabanagem, tudo isso era muito preocupante naquele momento. A partir daí começa de fato a tentativa de controle sobre o Grão-Pará para fazer parte do Brasil.

“Ao longo desse tempo de apartamento, a gente já era uma outra coisa, a gente era bem diferente. Tanto que nos textos, mesmo nos ficcionais, quando você olha o pessoal daqui falando para lá, eles chamavam o Brasil. E nós não éramos o Brasil. O que mais assusta é quando a gente observa o discurso na prática: fui olhar como esses sujeitos entrevistados eram inseridos no texto. Os ribeirinhos, pescadores, moradores das margens, todos os que apareciam. A primeira coisa que salta é que essa região é vista como a região do fracasso, nada dá certo aqui. A única coisa que é exaltada pelos repórteres da época é a Belle Époque, época do ‘boom’ da borracha, como se isso tivesse trazido benesses para quem mora aqui. E a gente sabe que para quem mora aqui foi pura exploração para os seringueiros”, conta a pesquisadora, chamando a atenção que os sujeitos são vistos no texto como rudes, primitivos, incapazes, são sempre comparados com os valores da cidade.

“Quando o repórter, por exemplo, numa das séries, encontra um senhor ribeirinho – e os personagens que eles procuram são aqueles mais exóticos, quanto mais no meio do mato, afastado do mundo, é aquele que acham que é o amazônida, do estereótipo que eles querem. E quando ele pergunta para esse sujeito ribeirinho: ‘Mas o senhor nunca viu televisão?’, ‘O senhor não conhece o Antonio Fagundes?’, ‘Não conhece Fernanda Montenegro?’, ele coloca esse sujeito na negação absoluta. Esse sujeito é um nada, um ninguém. Além de tudo isso ele não lê e não escreve. O repórter não vê beleza, não consegue entender os saberes. Esse cara é um coletor de borracha da seringueira, aparece ele tirando o látex da seringueira”, lamenta a jornalista. “O saber local não é visto, tal qual o colonizador fez quando chegou aqui, não interessa o conhecimento da floresta, isso é misticismo, é mito”, pontua.

Para Vânia, esse é só um dos exemplos presentes na tese que mostram como nosso conhecimento ainda é muito eurocêntrico. “Eu digo que é uma colonialidade interna, ou seja, o Sudeste, Rio e São Paulo, onde são produzidas essas séries, locus da produção nacional televisiva, ainda olha para cá como se fossemos colônia do Brasil, periferia”, acrescenta.

BATE-PAPO

Lançado pela Paka-Tatu, o livro é uma adaptação da tese da pesquisadora, sob a revisão de Paulo Maués, que estará ao lado da autora para um bate-papo durante o lançamento, junto com a professora Alda Costa (UFPA). Eles falarão sobre as linhas argumentativas da pesquisadora, que hoje cumpre estágio pós-doutoral na Universidade da Amazônia.

“Nós fizemos uma revisão para deixar o texto mais fluído, menos pesado, menos acadêmico, tiramos um capítulo. Ele está dividido em seis capítulos e o que eu destaco é esse modo de olhar para o sujeito, para esse sujeito que aparece sempre à sombra da floresta. Por isso o título”, diz a autora, que faz parte do Programa de Pós-graduação e Comunicação, Cultura e Amazônia da UFPA.

Vânia Torres começou sua trajetória televisiva em 1988, na Rede Brasil Amazônia de Comunicação (RBATV) e depois passou pelas TVs Cultura e Liberal. Atualmente, é professora da Faculdade de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia, da Universidade Federal do Pará.

“Foi a minha escola inicial, eu ainda era estudante, fiz treinamento para entrar na RBA. Sempre digo com prazer que comecei aí, a aprender, andei os primeiros degraus na reportagem televisiva da RBA”, relembra Vânia.

LANÇAMENTO

“À sombra da floresta: a Amazônia no jornalismo de televisão”, de Vânia Torres Costa
Quando: Hoje, 2, às 17h30.
Onde: Instituto Histórico e Geográfico do Pará (R. D’Aveiro, 62 – Cidade Velha)
Quanto: Entrada gratuita.