No início da década de 1980, Ronald Reagan assume a presidência dos Estados Unidos e incentiva uma nova onda de conservadorismo no país, com aumento de gastos militares e a consequente intensificação das tensões políticas com a União Soviética. A Guerra Fria, que havia apaziguado, volta a ganhar contornos sombrios.
Uma realidade que parece não fazer parte da rotina de Philip e Elizabeth Jennings. Em uma bela casa no subúrbio de Washington, eles criam seus filhos, Paige e Henry, enquanto dirigem uma pequena agência de turismo. Uma família clássica de comercial de margarina vivendo o sonho americano. Mas tudo não passa de mera fachada. Eles, na verdade, são espiões soviéticos. Essa é a base de “The Americans”, série que completou no último dia 30 de janeiro dez anos da sua estreia e que teve seis excepcionais temporadas.
Recrutados e treinados desde crianças para viverem infiltrados como nativos, os protagonistas realizam as suas missões em pleno território norte-americano, lidando diariamente com o risco de serem descobertos pelo FBI – o fato de Stan Beeman, um agente de contraespionagem ter virado vizinho e “amigo” deles torna tudo ainda mais complicado, e excitante – e pelos próprios filhos, que não sabem qual é o trabalho de verdade e mesmo a identidade de seus pais.
O clima de paranoia crescente daqueles tempos é uma das principais características da série. Sem concessões. Ou seja, é algo que vem tanto da própria natureza da espionagem, com seus perigos e desconfianças inerentes, como também do estado psicológico dos protagonistas, e da relação do casal, que embora tenha sido formado artificialmente pelo governo russo e, portanto, apresente certas peculiaridades (o sexo é usado naturalmente como arma de guerra, por exemplo), é real, tem sentimentos envolvidos, dramas e dilemas.
Isso é fundamental para desenvolvermos nossa relação de afeto e, sim, cumplicidade com atos de violência que eles irão cometer. A culpa também entra na equação. Essa complexidade, aliás, é outra forte presença em “The Americans”, pois, basicamente, tudo está em jogo e pode ser perdido em um piscar de olhos. Quem há de julgar os métodos utilizados? Qual a bússola moral? A priori, Elizabeth é aquela que obedece cegamente e rejeita o capitalismo totalmente; já Philip tem mais conflitos existenciais e é aberto às tentações do Ocidente. Mas há áreas cinzentas. E ambos cumprem rigorosamente seus deveres, mesmo com suas diferenças. Um delicado equilíbrio que eles tentam não romper.
Outro aspecto interessante é que é raro vermos a ação do ponto de vista soviético. Mesmo a Guerra Fria sendo um tema extremamente batido no cinema e na televisão, sempre estamos dentro dos bastidores norte-americanos. Então, esse frescor é muito bem-vindo e nos faz até querer conhecer mais sobre aquele período. E não só no tempo atual da série. As cenas de flashback, da formação de ambos, quando ainda eram apenas Mischa e Nadezhda, são importantes para a construção não só da ambientação, mas dos personagens, dando o contexto, na medida do possível, para os seus medos, sonhos e atitudes.
Além disso, lembre-se, são os anos 80. Então, trata-se uma trama de espionagem à moda antiga. O ápice da tecnologia aqui são mensagens repassadas via rádio de ondas curtas. Mas espere também por Código Morse e até mesmo anotações deixadas estrategicamente em pontos da cidade; fora isso, temos equipamentos de gravação “retrô” e dispositivos de escuta inusitados. Ah, claro, e os disfarces. Perucas variadas, óculos de aros gigantes, ombreiras, bigodes e tudo mais que a maravilhosa cafonice da época permitia. Tudo isso embalado por uma trilha sonora escolhida a dedo, fugindo de obviedades oitentistas e apostando em Phil Collins, Fleetwood Mac, The Cure e Pete Townshend, por exemplo.
Em resumo, a série é brilhantemente escrita, ao mesclar uma espécie bem particular de drama familiar com um thriller de espionagem que se desenvolve lentamente, com múltiplas camadas, apostando na inteligência do espectador. E ela conta ainda com atuações de Keri Russell e Matthew Rhys que transitam do visceral ao intimista com extrema naturalidade. É brutal, é sexy, é tocante. Definitivamente, “The Americans” é uma série que merece ser redescoberta.
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