Círio de Nazaré em tempos de pandemia: fé, criatividade e superação em 2020 e 2021
Círio de Nazaré em tempos de pandemia: fé, criatividade e superação em 2020 e 2021. Foto: Agência Pará

Há cinco anos, o clima de festividade dava lugar a uma Basílica de Nazaré vazia, com transmissões ao vivo sem a presença dos fiéis e diversas restrições de segurança para conter o avanço da pandemia covid-19, que passava pelo momento mais crítico. Mesmo sem os milhões caminhando pelas ruas da capital paraense, as edições do Círio de 2020 e 2021 não deixaram de ocorrer e até hoje marcam a memória dos devotos.

“Ave Maria, cheia de graça” foi o tema escolhido para a 228ª edição do Círio, em 2020. O início da oração em honra à Virgem Maria parecia convidar os católicos a manter a fé durante a pandemia. À época, em pronunciamento oficial, o Arcebispo Metropolitano de Belém, Dom Alberto Taveira Corrêa, afirmou que os meses em recolhimento por conta da covid “nos fizeram viver em Igrejas domésticas que se abriram e se multiplicaram, a escuridão não tomou conta de nós. Nossa devoção a Nossa Senhora de Nazaré nos fez desfiar as contas do Rosário, contemplando com o Coração e o olhar de Maria os mistérios de Cristo”.

A contemplação ganhou um outro significado naquele momento: toda a programação oficial foi realizada de forma remota, contando apenas com o arcebispo, seus auxiliares e outros sacerdotes. A corda, um dos grandes símbolos de conexão com os promesseiros, foi dividida e enviada para as 95 paróquias da Arquidiocese, simbolizando a unidade da Igreja e um grande rosário. Apesar das limitações e do apelo para que os fiéis permanecessem em casa, a fé falou alto nos corações. Com máscaras, reunidos em pequenos grupos e com uma caminhada silenciosa, intercalada por preces e cânticos espontâneos, os devotos saíram às ruas no segundo domingo de outubro de 2020.

A estimativa do Corpo de Bombeiros foi de cerca de 100 mil nas procissões não oficiais, que mobilizou mais de 1,6 mil agentes de segurança do estado, do município de Belém e das Forças Armadas. A operação foi considerada desafiadora pelas autoridades, mas realizada com êxito: nenhuma ocorrência grave de saúde ou policial foi registrada. Enquanto nas principais vias as equipes estavam de prontidão, o comando das instituições envolvidas na operação monitoravam e avaliavam o movimento por meio de 16 câmeras espalhadas por todo o percurso, por aproximadamente 24h.

No entorno da catedral, mesmo sem a tradicional Missa que marca o início da procissão, dezenas de fiéis esperavam o término da celebração, realizada de portas fechadas. A expectativa era acompanhar a subida do voo de helicóptero com a imagem peregrina de Nossa Senhora de Nazaré, que fazia parte da programação oficial. Porém, quem estava no gradil próximo à Sé teve uma surpresa ainda maior: sem aviso, o arcebispo subiu em um carro aberto com a imagem e chegou próximo da barreira. “Quando cheguei à sacristia antes da Missa, pedi para que conseguissem uma caminhonete e um carro som e, ao final, acabei levando a imagem para abençoar as pessoas que estavam ali. A minha vontade era seguir com ela até a Basílica, mas não faria essa irresponsabilidade”, revelou Taveira, em entrevista.

Após a breve bênção, a santinha foi levada até o helicóptero, que naquele ano e no seguinte teve propósito semelhante ao da berlinda, outro ícone do Círio. Os olhares se voltaram para o céu para acompanhar o sobrevoo pelo trajeto tradicionalmente percorrido durante o Círio e, de forma especial, sobre os principais hospitais da Região Metropolitana de Belém, além de unidades de saúde e postos de atendimento aos pacientes contaminados pelo vírus. As pétalas de rosas jogadas do alto simbolizavam a ternura de mãe e esperança para que os internados continuassem a ter fé.

Círio Histórico e a Pandemia

O pouso foi realizado na praça Santuário, vazia, onde a imagem foi entregue ao governador Helder Barbalho para receber as honrarias de chefe de Estado – como ocorre na chegada do Círio Fluvial. A imagem foi agasalhada posteriormente na berlinda e fez um pequeno percurso até a Basílica, sendo recebida pelo arcebispo de Belém. O governador e a primeira-dama, Daniela Barbalho, entraram na igreja segurando um pedaço da corda que seria usada na tradicional procissão. Na homilia que encerrou aquele Círio histórico, Dom Alberto afirmou que “o coronavírus nos fez repensar o quanto somos pequenos e frágeis, portanto, não sejamos pequenos de coração, não sejamos orgulhosos. Este foi o Círio da solidariedade, não poderíamos fazer festa no meio de tantos irmãos sofredores que perderam familiares”.

Em 2021, a programação foi semelhante e a grande procissão não foi realizada pelo segundo ano consecutivo. Com as primeiras doses de vacina aplicadas e novas medidas de segurança, um número limitado de pessoas acessou a Basílica durante as missas oficiais, usando máscaras, álcool em gel e munidos da carteira de vacinação. Naquele período, a distância mínima entre as pessoas era de 1,5m. Neste ano, mesmo sem a procissão oficial, centenas seguiram nas ruas, representando um número maior que em 2020: foram 400 mil pessoas, segundo o Sistema de Segurança Pública do Pará. A novidade foi a apresentação da Esquadrilha da Fumaça que cortou o céu próximo da Basílica com a frase “Círio de Nazaré”.

Legado e Aprendizado do Círio durante a Pandemia

Ao invés de se tornar capítulos a serem esquecidos, os dois anos de restrições representaram um período de enriquecimento espiritual e de grande experiência para conduzir a procissão. “A verdade é que houve uma grande efusão criativa, iluminada pelo Espírito Santo e pela Virgem Maria. Na época, inclusive, a gente chamava de criatividade evangelizadora”, revela Jorge Xerfan, que em 2020 era diretor-secretário da Diretoria da Festa de Nazaré (DFN), responsável pela organização do Círio. Os primeiros sobrevoos de helicóptero com a Peregrina, por exemplo, ocorreram nos meses de março e abril de 2020.

“Também no mês de abril, em um navio da Marinha, a imagem fez um passeio pelos rios que banham nossa cidade, momento emocionante que ficou conhecido como a benção nas águas”, disse Xerfan. Já no mês de maio, dedicado à Maria, a DFN entregou imagens de Nossa Senhora de Nazaré aos hospitais que estavam tratando os pacientes da covid. Em outra ponta, o chamado “Círio Solidário” distribuiu mais de 3.500 cestas básicas para famílias vulneráveis. “Os carros de promessas também ficaram expostos em frente à Basílica para os fiéis”, lembra o diretor. Nesses locais foram depositados dezenas de ex-votos, objetos de cera que representam graças alcançadas por intercessão de Nossa Senhora de Nazaré.

A novidade em 2021 foi a criação do Carro da Saúde, trazendo dois médicos e Santo Antônio Maria Zaccaria, no intuito de homenagear e agradecer aos profissionais de saúde que se dedicaram no combate à pandemia. O veículo continua a fazer parte do Círio e é o 14º carro dos milagres. As projeções de imagem chamadas de videomapping, criadas para transmissão virtual, também continuam a fazer parte da programação, desta vez no encerramento da festividade. Além do material, “o maior legado é que nunca desanimemos diante das dificuldades. Até hoje, quando temos alguma dificuldade, a gente lembra ‘poxa, passamos por coisas piores e conseguimos solucionar’. É dos impossíveis que as surpresas podem vir”, finaliza Jorge Xerfan.