O Círio de Nossa Senhora de Nazaré chega a atrair mais quase 90 mil turistas para a capital paraense em outubro, mas o lado criativo, gastronômico e histórico da capital paraense também tem muito a oferecer aos turistas e visitantes mesmo fora da temporada do Círio. Seja conhecendo eventos que não estão inseridos nos roteiros tradicionais da cidade, ou exercitando um novo olhar para locais já conhecidos, é possível conhecer muito sobre a cultura e o modo de vida de quem vive na capital amazônica.
Considerada a maior feira à céu aberto da América Latina, o complexo do Ver-o-Peso é sempre movimentado por consumidores que buscam itens básicos da alimentação como frutas, verduras, castanhas, peixe. Mas não é apenas isso que o turista pode encontrar no cartão postal mais conhecido de Belém. Para além de insumos típicos da região amazônica, o veropa também guarda parte da cultura da população.
No reformado prédio do Solar da Beira é possível garantir uma vista panorâmica do Ver-o-Peso, mas também o contato com peças do artesanato paraense. Reunidos no mesmo espaço, os trabalhos apresentados pelos próprios artesãos vão desde utensílios da cerâmica de Icoaraci, até biojoias e peças de miriti.
Terceira geração de uma família de ceramistas, o artesão Roberto Navegantes é um dos que se deslocam de Icoaraci para o Solar da Beira para expor suas produções. A banca mantida no local reúne os trabalhos de quatro artesãos do distrito, que se revezam durante a semana para mediar a venda com os visitantes. Quando não está na venda, Roberto está em Icoaraci produzindo as peças que serão expostas na semana seguinte.
“Eles (turistas) gostam muito, principalmente quando a gente fala que nós mesmos somos os artesãos. Eles gostam de comprar da nossa mão, a gente explica um pouquinho como é a produção, então, para eles, é melhor comprar pelo próprio produtor”, aponta. “O pessoal gosta muito de coisas que são utilitárias, né? Alguns gostam de peças decorativas, mas a maioria gosta do utilitário. É o porta-caneta, porta-lencinho, porta-vela, porta-incenso, panela, saladeira, tigelas e combucas”.
Roberto destaca que a possibilidade de expor as peças no Ver-o-Peso possibilitam um maior acesso aos turistas, já que nem sempre os visitantes têm tempo de ir até Icoaraci, onde fica o polo ceramista da cidade. Dessa forma, quem vai ao Ver-o-Peso consegue conhecer um pouco da história por trás da técnica milenar que até hoje é mantida viva em Belém. “Dá pra conhecer uma parte da cultura de Belém através da cerâmica, com certeza. Icoaraci já produz cerâmica há muitos anos, acredita-se que desde o início do século passado. Por exemplo, eu sou da terceira geração de uma família que produz cerâmica, trabalho com isso há 47 anos. É uma tradição na minha própria família”.
Em outra banca montada no local, também é possível conhecer algumas referências da cultura do Estado do Pará através dos acessórios inspirados na temática regional. A artesã Cristiane Menezes dos Santos atua profissionalmente na área há 20 anos e também reveza o ponto de venda do Solar da Beira com outros artesãos. “Eu criei minhas filhas através do artesanato. Aos domingos eu exponho as peças na Praça da República e exponho aqui de 10 em 10 dias porque revezamos com outros artesãos da praça”.
As bijuterias produzidas pela artesã são feitas em cerâmica fria e sempre buscam valorizar algum aspecto da identidade paraense. “Eu me inspiro muito nas coisas regionais, as nossas folhas, no grafismo Marajoara, e como agora está nessa época, no Círio também”, conta. “Aqui é um local de turismo, todo turista que vem em Belém, vem no Ver-o-Peso, então, eles conhecem o nosso trabalho aqui”.
A cultura e a identidade do Pará também são a inspiração da artesã Joseane Carrilo, que produz bolsas e necessaires. “Umas são estampadas, outras com aplicação, mas sempre com as temáticas do Estado do Pará, do Círio, com essa indígena também. É bom porque os turistas já vêm com aquela curiosidade de conhecer a cultura local, então, eles preferem essas temáticas”.
O que fazer em Belém além do Círio de Nazaré
Cultura alimentar
A alguns passos do Solar da Beira, o turista também pode se deparar com um aspecto muito representativo da cultura alimentar paraense, a maneira tradicional de se consumir o açaí. Internacionalmente conhecido, o fruto é consumido na sua versão mais fresca nos estados da Amazônia e para quem tem curiosidade de conhecer o modo peculiar do paraense consumir o açaí, o Ver-o-Peso é o lugar ideal.
“Os turistas ficam bem curiosos, mas às vezes tem o medo de comer e não gostar. Mas a gente tem aquele modo carinhoso de apresentar o produto para eles e, no final, acabam provando”, contaAlberto Silva,responsável por um dos boxes que vendem peixe frito com açaí no mercado. “Eles estão acostumados com o açaí pasteurizado, às vezes eles chegam aqui e querem desse tipo, mas a gente explica que aqui eles vão poder comer o açaí tradicional para saber como é”.
Não é raro que, além de vender, Alberto também precise ensinar um pouco da cultura alimentar do paraense no que se refere ao consumo do açaí. E o processo inicia com a própria apresentação do prato: de um lado o peixe frito e, ao lado, a tigela com o açaí. “Muitas vezes a gente precisa explicar como funciona. Às vezes eles querem colocar o peixe no prato e jogar o açaí por cima e fica aquela gororoba. Mas eu explico que é pra colocar primeiro o peixe na boca, depois o açaí”, aponta, ao contabilizar que vende de 100 a 120 kg de peixe frito e 20 latas de açaí por dia no local. “O peixe que mais sai, que eles mais gostam, é a dourada e o filhote”.
E o modo paraense de consumir o açaí não passa despercebido pelos turistas, independente da origem deles. Visitando Belém pela primeira vez, os turistas suíços Nicole e Pete Lehmann ficaram encantados com a bacia de açaí exposta no balcão do boxe de Alberto. “Eu amo açaí. Um amigo sempre leva açaí em pó para a Europa. Eu coloco no meu cereal toda manhã porque eu sinto como se fosse uma lembrança do Brasil”, conta Nicole. “Mas esse açaí daqui é diferente, melhor do que o em pó”.
Do Brasil, o casal já conhece cidades como Recife e Rio de Janeiro, mas conseguiram identificar muito rapidamente as particularidades de Belém. “É diferente de Recife. Nós já estivemos em Recife e no Rio, e é diferente. É muito mais úmido e quente aqui, mas é muito bom conhecer o mercado e, claro, o rio”, apontou Pete, apontando para a Baía do Guajará ao fundo. “É muito bom, as pessoas são ótimas e muito prestativas”.
Atrações culturais e de lazer em Belém
Noites de música e cultura popular
Ainda no complexo do Ver-o-Peso, toda primeira sexta-feira do mês é uma oportunidade de conhecer o ritmo dos tambores do Samba Batuque da Feira do Açaí. Desde 2020, o projeto que nasceu como uma proposta de ocupação cultural reúne um público crescente em torno da música e da arte produzida por artistas paraenses e que vivem no estado. O evento é organizado de maneira independente pelo Samba Fé no Batuque.
Somando esforços à organização, a DJ responsável peladiscotecagem do evento, Jackeline Ferreira, destaca que o público do batuque tem crescido a cada edição. “É uma agenda bem alternativa, mas que está consolidado na agenda mensal de eventos da cidade porque a gente tem acompanhado, a cada edição, um crescimento de público. O projeto já existe desde 2020 e a proposta é justamente levar o samba como uma opção de lazer gratuita em um espaço público que é histórico, o que tem uma importância grande também”.
A ideia do projeto é justamente ocupar um espaço que era visto como ocioso e marginalizado e movimentá-lo através da cultura, do lazer, da música, da arte. “Não é só o samba, também tem outras linguagens, às vezes tem performance dentro da programação. Então, tem a roda de samba, mas tem discotecagem, tem um grupo de carimbó que se apresenta e outros grupos regionais e outros estilos musicais. Dentro da roda de samba também se convidam artistas que estão iniciando ou que já têm uma longa estrada no samba para fazer participações. A programação sempre é variada”.
Caracterizado por Jackeline como uma grande confraternização, o evento busca incentivar e democratizar o acesso à cultura, ao lazer e ao entretenimento no espaço público. Por isso mesmo, é aberto e gratuito que tem como pano de fundo o espaço recém-revitalizado da Feira do Açaí, com os casarões históricos da rua Ladeira do Castelo.
“A gente tem essa bandeira de democratização do acesso à cultura e também de apoiar e incentivar a nossa arte local, os artistas locais, reforçar e valorizar o samba, e tirar um pouco da marginalização não só o samba, como do batuque de forma geral, que sempre foram estilos perseguidos, historicamente. Então, a gente também tem essa questão de resgatar essa ancestralidade, por isso que também é na Feira do Açaí, porque também ali é um espaço ancestral e de muita história”, destaca. “Então, a gente também tem essa tem essa bandeira de resistência cultural, de resistência pela ancestralidade, de resistência pelo batuque, pelo samba, por ser uma cultura negra também, uma cultura popular”.
Sem fins lucrativos e realizado de maneira independente, o evento conta com apoios importantes para seguir a sua jornada. Em quase cinco anos de realização, a roda de samba vem se consolidando assim como já ocorreu com outras rodas de samba populares de outras capitais, mas com o diferencial da pegada amazônica. Também através da arte, a manifestação cultural chama a atenção para o combate ao racismo, à homofobia e à violência contra a mulher.
“A gente tem um evento que é voltado justamente para a comunidade LGBTQIA+, que é a Batucada do Arco-Íris, que já tem três edições. Agora em novembro, por exemplo, a gente vai fazer pela primeira vez a edição do Dia da Consciência Negra, que agora virou um feriado. Então, também defendemos essa desmistificação e desmarginalização da cultura afro-religiosa de matriz africana”, pontua Jackeline. “É um evento independente, que não tem fins lucrativos. A gente consegue uns apoios esporádicos e agora nesse retorno para a Feira do Açaí reformada, a Prefeitura de Belém está apoiando a gente com a estrutura de palco, lixeiras e banheiros químicos, além de ter liberado a taxa de licença que a gente pagava antes”.
Espaço Cultural Casa das Onze Janelas
Casa das Onze Janelas
Se o interesse pela arte produzida no Pará persistir, outra forma de ter acesso às produções do estado, e do resto do Brasil, é comparecendo no Espaço Cultural Casa das Onze Janelas. Abrigado em um prédio construído no século XVIII, que originalmente foi residência de Domingos da Costa Bacelar e posteriormente adaptado para receber Hospital Real Militar, o espaço museológico une o passado ao contemporâneo.
A historiadora do Sistema Integrado de Museus e Memoriais, órgão vinculado à Secretaria de Estado de Cultura do Pará, Cassia da Rosa, destaca que o Espaço Cultural Casa das Onze Janelas é dedicado à arte contemporânea e foi composto a partir de uma coleção que resultou de uma estratégia de negociação feita entre o Governo do Pará e a Funarte, à época. A partir do encaminhamento dessa coleção da Funarte para a Secult, que ficou responsável pelo restauro do acervo, foi costurada a ideia para montar uma exposição, mas, mais que isso, foi montado o Espaço Cultural.
“É um acervo muito rico porque ele vem de um Salão Nacional de Artes Plásticas. Então, tem obras de artistas renomados da arte brasileira. Grandes nomes como Adriana Varejão, que hoje é reconhecida internacionalmente, e também de artistas paraenses como Emmanuel Nassar, que também tem um grande reconhecimento no campo da arte contemporânea”, destaca. “E a partir disso outras coleções foram sendo incorporadas ao acervo da Casa das Onze Janelas”.
Cassia destaca que, quando se pensa em arte contemporânea, às vezes as pessoas acabam imaginando algo muito abstrato, de difícil compreensão, mas no geral, as exposições montadas no espaço costumam ter uma narrativa voltada para a compreensão de um aspecto relevante da vivência local. “A gente também possui aqui uma coleção que foi montada dentro de um projeto chamado Fotografia Contemporânea 80-90, que busca visibilizar esses artistas fotógrafos que estavam nessa cena de efervescência cultural de oficinas e de valorização da arte fotográfica no Pará, então, a gente tem Miguel Chikaoka, Paula Sampaio, Luiz Braga, entre outros que estiverem em movimentos como a Fotoativa, a Kamara Kó, que são que são movimentos muito fortes da fotografia aqui no estado do Pará”.
E tudo isso está inserido dentro de um prédio que, diante do contexto histórico e de usos já recebidos, também fala por si. Fazendo lembrar episódios que, apesar de vergonhosos para a história do Brasil, não podem ser esquecidos, hoje o prédio foi ressignificado para fazer refletir através da arte. “Essa casa foi construída para abrigar a residência do senhor de engenho Domingos da Costa Bacelar, mas o Presidente da Província da época negociou com ele para que fosse construído o Hospital Real Militar”, rememora a historiadora.
“E por muito tempo ela permaneceu dentro de uma área militarizada, tanto que durante a ditadura civil-militar também foi usada como local onde se prendiam os presos políticos e onde se praticaram torturas também. Então, a gente tem um relato dessa nossa história recente e bem violenta, mas que passou por um processo de requalificação para a construção desse espaço museal, não sem rememorar esse aspecto que também é relevante para que a gente possa compreender tanto a construção da cidade, quanto a história do próprio prédio”.