CLÁSSICO DOS ANOS 70

“Serpico”: uma escolha entre o que é certo e o que é fácil

Al Pacino interpreta o policial Frank Serpico, que não abre mão da sua honestidade e luta contra o sistema, custe o que custar.

Al Pacino em atuação magistral - Foto: Divulgação
Al Pacino em atuação magistral - Foto: Divulgação

A abertura de “Serpico”, filme de 1973, dirigido por Sidney Lumet, é crucial para emaranhar o espectador em sua teia. Em uma montagem acelerada, vemos uma pessoa baleada no banco de trás de uma viatura. Enquanto o sangue jorra, o barulho da sirene e a velocidade do veículo já seriam suficientes para nos colocar, de imediato, em um estado de tensão. Mas tem mais. A cena é entrecortada por ligações telefônicas. Primeiro, conhecemos a identidade da vítima. Trata-se de Serpico, um policial. Depois, vem a informação principal: uma teoria sobre quem teria cometido o atentado. E a fala “conheço vários policiais que adorariam dar um tiro nele” estabelece o tema da obra e a sua intensa carga dramática.

A partir daí, o filme assume a condição de uma cinebiografia clássica, mostrando os primeiros passos de Serpico na polícia, desde a formatura. O seu jeito despojado, de bom moço, tranquilo, com “cara limpa” contrasta fortemente com o sujeito barbudo, estilo hippie, e de aspecto cansado e alucinado, cuja agonia à beira da morte presenciamos no início. Essa estrutura narrativa é extremamente eficaz e proporciona, de forma orgânica, um passeio entre gêneros. Da ação ao drama e vice-versa. E tudo para responder à pergunta: o que diabos aconteceu entre um ponto e outro dessa história?

Se tem um aspecto da filmografia de Lumet que salta aos olhos é a sua objetividade. O diretor não perde tempo com floreios. Tudo tem um propósito e serve à narrativa e aos personagens. E isso não significa simplicidade. Ao contrário. O seu cinema é marcado por temas complexos, que refletem a realidade. Por isso, a resposta à pergunta acima não tarda. Serpico sempre quis ser um policial para servir à comunidade, protegê-la. Para ele, a honestidade é uma qualidade intrínseca à profissão. Inegociável. Contudo, o sistema é corrupto e a sua moralidade será testada cotidianamente por colegas e superiores.

“Enquanto o objetivo de todos os filmes é entreter, o tipo de filme em que acredito vai um passo além. Ele leva o espectador a examinar uma ou outra faceta de sua própria consciência. Ele estimula o pensamento e coloca para circular o fluxo mental”, disse Lumet, certa vez. É um conceito bastante atual e que, claro, está presente aqui. A escolha de Serpico entre fazer o que é certo em detrimento do que é fácil pavimenta o seu caminho, para o bem ou para o mal. Ora, ao mesmo tempo que suas atitudes são admiráveis, lutar contra tudo e todos cobra um preço. Vale a pena se manter honesto e perder amigos, amores, oportunidades, sua sanidade e até a própria vida? É um dilema moral, sem dúvida.

Também é interessante notar que “Serpico” correria um risco muito grande de resvalar para o melodrama, o piegas, se não fosse protagonizado por um ator do quilate de Al Pacino. É uma das maiores atuações de sua brilhante carreira. A transformação gradual de seu personagem é um trabalho de artesão, que vai muito além do visual. Aos poucos, o gestual se torna mais inquieto, a voz aumenta um ou dois tons e, principalmente, o seu olhar, antes carregado de esperança, alegria e até certa ternura, e que agora tem espaço somente para a paranoia e desconfiança com todos que estão à sua volta.

“Serpico” é uma história baseada em fatos reais e foi um choque de realidade à época, desafiando o patriotismo norte-americano, expondo as entranhas da corrupção policial, que era um tabu, um verdadeiro escândalo. Com os olhos de 2025, bem, a trama ganha ares utópicos, pois é duro imaginar alguém com tamanha disposição para agir não só corretamente, mas sem concessões ao que é errado. A sociedade atingiu níveis elevados de cinismo com a naturalização de pequenas corrupções (a famosa “cervejinha” ao guarda de trânsito ou ao policial que protege um estabelecimento comercial) e a permissividade com esquemas e negociatas no alto escalão dos governos de todo o mundo. Tem até gente que defende genocídio, vejam só. Assim, lutar pelo certo é mal visto. Pobre Serpico. Há muito tempo o mundo está ao contrário e ninguém reparou.

Onde assistir

  • “Serpico” está disponível para streaming na HBO Max e para aluguel no Amazon Prime Video e Apple TV.

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