DIÁRIO EM GRAMADO

A violência e a morte ressignificadas na tela do Festival de Gramado

A competição de longas metragens da 53° edição do festival se encerrou com Sonhar com Leões e Cinco Tipos de Medo

20/08/2025 - 53º Festival de Cinema de Gramado - Mostra competitiva de Longas-metragens brasileiros - "Sonhar com Leões" - Ator Felipe Rocha, atriz Denise Fraga e o diretor Paolo Marinou-Blanco | Foto oficial: Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto
20/08/2025 - 53º Festival de Cinema de Gramado - Mostra competitiva de Longas-metragens brasileiros - "Sonhar com Leões" - Ator Felipe Rocha, atriz Denise Fraga e o diretor Paolo Marinou-Blanco | Foto oficial: Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto

Uma narrativa kafkiana, onde um cachorro existencialista discorre sobre a finitude da existência com Amadeo (João Nunes Monteiro), um jovem que trabalha num necrotério preparando os mortos para velórios. Mas esse personagem canino se une a outros personagens acessórios, alguns inclusive vivos, que cruzam os caminhos com Amadeo e Gilda (Denise Fraga), uma mulher que ama viver mas que está saturada e não quer conviver com um câncer agressivo. Essa é a premissa de Sonhar Com Leões, de Paolo Marinou-Blanco, rodado em Portugal e produzido no Brasil com assinatura do realizador que é nova iorquino. 

O filme, exibido na competição de longas metragens ficcionais do Festival de Gramado, trata de temas como suicido, eutanásia e o direito de morrer na chava da ironia, trazendo um improvável casal que se forma – Amadeo e Gilda – quando se conhecessem no programa de “aceitação da morte” da corporação de wellness Joy Transition International.

Numa narrativa bem próxima a das histórias da antologia Black Mirror de Charlie Brooker, a primeira metade de Sonhar Com Leões fala sobre Formas Ridículas de Morrer (parafraseando a campanha viral Dumb Ways To Die, do serviço ferroviária australiano), e a segunda, sobre reconquistar a gana de viver mesmo na iminência da morte.

E a discussão sobre, se existe gatilhos disparados pela história por meio de cenas que podem ser interpretadas como sugestivas, tocou a atriz Denise Fraga, que disse que “a compreensão de cada espectador sobre o filme pode ser diferente mas um alerta se faz necessário, por mais que este seja um filme sobre a vida. A arte, mesmo quando nos salva, tem uma responsabilidade ainda maior nesses tempos de empobrecimento subjetivo e intelectual muito grande que vivemos”.

O filme teve uma recepção mista por parte do público de Gramado, talvez pela forma rebuscada como se vale do seu invólucro distópico e cinico para tratar de questões essencialmente humanas, como quando Amadeo e Gilda vão vivendo dias incríveis enquanto a morte ideal, em tempos de exaustão do capitalismo e do idealismo amoroso, não chega. Paolo falou que Hal Ashby, cineasta estadunidense responsável pelo clássico romance melancólico e gracioso que é Ensina-me A Viver, é sim uma grande referência para o cineasta, além de Luis Buñuel e Bong joon-ho pela crítica à burguesia e o uso das distopias com metáforas irônicas.  Tendo estreado em 2024 no Tallinn Black Nights na Estônia, Sonhar Com Leões tem distribuição da Pandora Filmes e estreia em 11 de setembro nos cinemas do país.

E por falar em reação do público que esteve no Palácio dos Festivais assistindo aos filmes, o Cinco Tipos de Medo, último longa exibido na competição de filmes ficcionais, na noite de quinta-feira, teve aplausos e direito à ovação para o cineasta cuiabano Bruno Bini e o elenco numeroso da produção fora do eixo sudestino. Trama originada de histórias reais da cidade de Cuiabá, que nas estatísticas é tida como uma das cidades mais violentas brasileiras, tema que já havia sido abordado no curta Três Tipos de Medo, de 2016, que conta com Jonathan Haagensen.

O Sapinho, traficante de drogas que foi um personagem verídico, talvez seja o principal elo de ligação entre o curta e o longa, onde esse personagem é vivido pelo cantor e ator Shaman. Outro grande destaque é Bella Campos – a Maria de Fátima de Vale Tudo – que é matogrossense e vive a mocinha da história, a enfermeira Marlene.

A história, com uma progressão dramática estilizada a partir dos códigos dos filmes de ação e drama policial, como Dois Coelhos de Afonso Poyart e uma estrutura próxima a de Traffic, de Soderbergh, constrói um arco sobre a violência, a vingança e as formas de superar os medos que assolam os moradores de uma metrópole. “É sobre os nossos impulsos primitivos, que a narração inicial discorre e, ao não seguir parâmetros que poderiam engessar a narrativa, estabelece que todas as atitudes dos personagens dali em diante vão ser extremadas e talvez injustificadas porque eles agem a partir dos seus impulsos mais violentos”, assinalou Bini durante o debate do filme.

Sendo o segundo ano consecutivo que um filme do centro-oeste (que não necessariamente de Brasília) entra na competição nacional de Gramado – após Oeste Outra Vez, de Erico Rassi, do Goiás -, o Mato Grosso é cenário e paisagem imagética de um filme de gênero, com ritmo frenético, bom fluxo de decupagem que funciona em concomitância com a direção das cenas, em especial de tiroteio e ação física, de forma harmônica.

Porém, a unidade do arco dramático exige uma suspensão da descrença, uma pactuação de público para aceitar a premissa, o ponto inicial da história, que não se concretiza já que a sucessão de coincidências envolvendo os cinco personagens principais e como vários deles têm suas vidas atravessadas por balas no mesmo instante, um excesso de viradas subsequentes na trama e desenvolvimento narrativo que transcorre de forma inverossímil descosturam a lógica de Cinco Tipos de Medo. No elenco do filme ainda estão Bárbara Colen, Rui Ricardo Diaz, João Vitor Silva, Zé Carlos Machado, Rejane Faria e o importante cineasta cuiabano Amaury Tangará. 

“Os Avós” faz história para o Amazonas na competição de longas documentais

Marcando a primeira participação do Amazonas na mostra competitiva de longas documentais, após O Barco e o Rio, curta de Bernardo Ale Binader ter amealhado cinco kikitos no festival de Gramado de 2020, Ana Lígia Pimentel apresentou Os Avós também no final da noite de quinta-feira no Palácio dos Festivais. A cineasta, que em 2022 lançou seu primeiro longa-metragem, a ficção Sete Cores da Amazônia, disputa na serra gaúcha o prêmio de melhor documentário com um filme que investiga o preocupante fenômeno social das avós e dos avôs jovens de Manaus e outras cidades do maior estado do Brasil; são pessoas que foram mães e pais aos 12, 13 ou 14 anos e se tornaram avós entre os 30 e 25 anos.

Equipe do longa-metragem documental "Os Avós", de Ana Ligia Pimentel | Foto oficial: Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto
21/08/2025 – 53º Festival de Cinema de Gramado – Equipe do longa-metragem documental “Os Avós”, de Ana Ligia Pimentel | Foto oficial: Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto

A abordagem utilizada trata de forma poética e sensível o que talvez seja necessário endereçar como calamidade, já que é comumente naturalizado por famílias amazonenses de diferentes classes sociais, como a documentarista expõe. Um excesso de personagens, entre 7 e 9 avós, torna o filme um tanto enfadonho em algumas passagens e arrastado na integralidade da narrativa mas tem sequências muito interessantes, sendo que no conjunto Os Avós possui uma execução técnica impecável, com roteiro assinado por Ana Lígia e Francis Madson, além da produção de Loren Luniere, Pedro Cacheado, Patrick de Jongh e da própria Ana Lígia Pimentel.

O filme disputa o único prêmio da categoria com “Até Onde a Vista Alcança” (SP), de Alice Villela e Hidalgo Romero;“Lendo o Mundo” (RN), de Catherine Murphy e Iris de Oliveira; e “Para Vigo Me Voy” (RJ), de Lírio Ferreira e Karen Harley. 

Texto de Lorenna Montenegro