Dar forma cinematográfica ao luto a partir de uma narrativa sensorial, feminina e feminista, galcada na singeleza da amizade entre duas meninas, Glorinha e Sofia, é o que faz de A Natureza das Coisas o filme mais sofisticado e bonito, ainda que exista uma simplicidade contida na harmonia da comunidade matriarcal de benzedeiras e rezadeiras retratadas, dentre todos os exibidos até agora na mostra competitiva de longas de ficção no Festival de cinema de Gramado.
Dirigido por Rafaela Camelo, a produção brasiliense tem Laura Brandão e Serena como as meninas protagonistas e Larissa Mauro e Camila Márdila como as mães, além de Aline Marta Maia como vó Francisca. A dinâmica entre essas atrizes e atrizes e atores não profissionais como Dona Iara, benzedeira (e agora atriz!) que habitam as redondezas e a casa da cidadezinha onde a história do filme se sedimenta e começa a resplandecer em fabulação, após a sequência inicial num hospital em Brasília.
Francisca precisa ser cuidada e a mãe enfermeira vivida por Mauro, vai com Glorinha para a região interiorana de origem da avó de Márdila – no caso, Sobradinho dos Melos, no Goiás. Entre vivos e mortos, ritos e crendices abrem espaço para aceitação.
“Quis abordar o medo como componente do luto; onde os espíritos não geram apreensão mas sim, confortam além de realizar uma cerimônia fúnebre da identidade morta de Bento pois ‘nome morto’ é como pessoas trans se relacionam a quem era então Sofia vive o luto de quem deixou morrer e da bisavó”, enfatizou a cineasta Rafaela Camelo durante coletiva de imprensa do filme. Ela também falou sobre a pesquisa que fez acerca de implante de coração e de outros órgãos inter espécies, uma das explicações da presença da porquinha que acompanha Glória, uma criança que teve órgão transplantado, ao longo do filme, que tem várias camadas de compreensão que podem ser percebidas por espectadores mais atentos e sensíveis.
A Natureza das Coisas Invisíveis recebeu o Prêmio Cabíria de Melhor Roteiro de Longa-Metragem em 2019 e estreou na mostra Generation Kplus do Festival de Berlim deste ano. Camelo assina o roteiro e também a montagem do filme junto com Marina Kosa. A produção foi escolhida como filme de encerramento do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que ocorre de 12 a 20 de setembro na capital federal.
A mulher que personifica o ofício da atuação
Marcélia Cartaxo foi a homenageada com o Troféu Oscarito nesta edição do Festival de Gramado, por uma trajetória que, apenas na serra gaúcha, resultou em dois Kikitos de Melhor Atriz: Por Pacarrete, de Allan Deberton em 2022 e A Mãe, de Cristiano Burlan em 2023. Além dos filmes como Madame Satã e Big Jato, Cartaxo pode ser conhecida pelas novas gerações e audiência da tv e do streaming por meio das séries e novelas Cangaço novo e Guerreiros do Sol. Em 4 de setembro estreia A Praia do Fim do Mundo, de Petrus Cariry, estrelado por ela fazendo uma personagem um tanto macabra de uma mãe doente que aprisiona a filha em uma casa caindo aos pedaços. Ela recebeu seu troféu em Gramado e informou que se prepara para ir para o Tocantins, onde irá viver uma benzedeira no filme Sobre Dora e Dores, de Bell Gama e Kaká Nogueira.
Texto de Lorenna Montenegro