ENTREVISTA

Doença de Chagas, parto no barco e barco à deriva: médico relata desafios no Pará

Ribeirinho, Fagner Carvalho, de 30 anos, conhece pela própria experiência as distâncias que precisam ser percorridas para oferecer atendimento de saúde a todos os brasileiros

Médico ribeirinho do Pará levará realidade da Amazônia a evento nacional em São Paulo
Médico ribeirinho do Pará levará realidade da Amazônia a evento nacional em São Paulo

Ribeirinho, Fagner Carvalho, de 30 anos, conhece pela própria experiência as distâncias que precisam ser percorridas para oferecer atendimento de saúde a todos os brasileiros. Nascido, criado – e hoje médico – na cidade de Abaetetuba (PA), a 2h30 da capital Belém, o clínico geral (com pós-graduação em Psiquiatria e Infectologia) percorre distâncias de barco e em alguns casos a pé para chegar aos pacientes. Nessas localidades, diz que vê pessoas que aguardam muito por diagnósticos e especialistas médicos.

– A maioria (dos colegas de medicina) foi embora para grandes capitais fazer residência médica, trabalhar nos grandes hospitais- reflete ele, que dará uma palestra com sua experiência no dia 23, em São Paulo, no Afya Summit, da empresa ligada à educação médica. Antes da visita à capital paulista, falou ao GLOBO sobre o acesso à medicina em áreas remotas, a própria formação e conta episódios da sua carreira, como o caso de uma paciente que iniciou o trabalho de parto em um barco.

Por que escolheu ser médico ?

Sou ribeirinho, toda a minha família também é, todos seguem morando no interior de Abaetetuba, uma localidade onde a energia elétrica chegou por volta de 2014. Antes, usávamos lamparinas. No vestibular, passei inicialmente em Design para uma faculdade do estado. Lá vi que não era isso que queria. Na época eu não me via com capacidade para fazer Medicina. Um pouco depois decidi fazer Enfermagem, mas logo passei a estudar para Medicina e consegui um financiamento estudantil e uma bolsa.

Onde são seus atendimentos? Onde começou?

Voltei ao município da minha família, Abaetetuba. Às unidades de saúde onde eu era paciente, na região do Rio Tucumanduba. Comecei a atender, por exemplo, na Ilha do Capim, onde tinha uma rotatividade muito grande de médicos, uma vez que há muita maresia, e é preciso atravessar de barco (para chegar). A maioria dos médicos não é daqui, e tem dificuldade de fazer essa travessia. Então, pensei: “nasci no meio da maresia, vou pra lá”. Depois que fiz minhas pós-graduações (em Psiquiatria e Infectologia) comecei em UBSs que precisavam de atendimento mais especializado.

A fila de atendimento é grande?

É grande. Há municípios em que (algumas especialidades) tem atendimento a cada 15 dias ou uma vez ao mês. Tem doutor que vem e, por exemplo, atende 30, 40 pacientes naquele único dia.

Desafios e Doenças na Região

Há prevalência de doença de chagas?

Acontece aqui um projeto da Fiocruz para fazer testagem do município, por conta da alta incidência, é uma doença de Chagas hiperendêmica. Os testes começaram em 2023, a proposta inicial era testar 50% da população. Para o teste ser aplicado, porém, é preciso realizar um questionário muito grande, então não conseguimos a demanda total, mas das 26 mil pessoas, mais de 1,7 mil testaram positivo em testes rápidos.

Quais tipos de esforços o médico precisa fazer para atender na sua região?

Para trabalhar no interior , é preciso se deslocar de barco. E assim ir até as UBSs. Os médicos quando vêm tem grande dificuldade de adaptação. No programa Mais Médicos, por exemplo, é preciso fazer cinco dias de atendimento na semana, o que não dá para garantir com certeza. Tem médicos que não querem atender localidades sem cobertura (telefônica), energia elétrica e internet. Então atendem pela manhã e voltam, para não dormir nas unidades.

Pode dar mais exemplos?

No município de Moju, trabalho em uma comunidade quilombola, em que se demora três a quatro horas para chegar. É preciso sair de casa por volta das 4h. Ao chegar à cidade, organizamos as equipes para ir ao interior. Na unidade de atendimento chegamos por volta de 9h ou 10h. Chego exausto, mas o que me motiva é garantir a assistência da população. Há pacientes que dizem: “olha doutor, aqui em casa as pessoas não podem adoecer, porque são apenas 30 fichas de atendimento por mês”. Em Abaetetuba, tive uma paciente que teve parto no meio da viagem.

O Caso do Parto no Barco

Como aconteceu?

Uma semana antes eu tinha falado para ela ir para a cidade porque já estava perto do parto, já havia sinais. E isso não tem hora certa para acontecer. Ela disse que esperaria até a outra semana. Na visita seguinte, ela estava com dor, tivemos que adiantar o atendimento e correr com ela. Quando estávamos quase chegando (na beira do rio) o bebê coroou. O bombeiro já nos esperava na margem para ir à maternidade. O menino está bem, grande. Em outra ocasião, ficamos à deriva, foi tenso. Ficamos mais de duas horas esperando alguém passar.

Impacto das Mudanças Climáticas

Como a mudança climática afeta a saúde no Pará?

No caso da doença de Chagas, a maioria dos pacientes vê o parasita dentro de casa, coisa que não era pra acontecer. Com o desmatamento e o aumento da temperatura, o tempo de proliferação do parasita cai. Então, a gente começa a ter uma replicação muito grande, o que está diretamente ligado ao clima. Também há o aparecimento de esporotricose, uma doença fúngica. As mudanças climáticas já estão acontecendo.

Texto de: Mariana Rosário