COMIDA QUE ALFABETIZA

Memórias afetivas da alimentação ajudam na alfabetização

Projeto em Belém resgata memórias e traz elementos do dia a dia para alfabetizar na Educação de Jovens, Adultos e Idoso

Foto: Beatriz Sampaio/ Ascom Semec
Foto: Beatriz Sampaio/ Ascom Semec

A aula começa. No quadro, ao invés de lições de português ou matemática, um desenho de uma casa tradicional de produção de farinha. A mesa do professor está repleta de ingredientes e produtos provenientes da tapioca, levados pelos próprios alunos. O professor lança a pergunta: “Quem era a pessoa na infância de vocês que fazia tapioca?”. Algumas vozes respondem: “minha mãe”, “minha avó”.

Após um dia inteiro de afazeres, os alunos da Educação de Jovens, Adultos e Idosos (Ejai) da Escola Comandante Klautau, sentados em círculo, apresentam relatos descontraídos de memórias de infância e seus conhecimentos sobre tudo o que tem relação com a tapioca, o tema da aula naquele dia: origem, ingredientes, formas de preparo.

Em meio aos relatos, o professor mostra palavras impressas em tamanho grande, todas relacionadas ao tema da aula. É assim que Carlos Santos busca alfabetizar a turma formada quase totalmente por idosos, por meio do projeto “Ancestralidade à mesa”.

Carlos, que coordena o projeto, explica que o objetivo principal é a alfabetização. “Temos aqui estudantes que estão há 30 ou 40 anos sem pisar em uma sala de aula. A proposta era de que eles tivessem pelo menos uma noção básica de algumas palavras vistas no dia a dia. Muitos são feirantes, pessoas que atuam no trabalho informal. E hoje eles já estão decodificando palavras como farinha, açaí, mandioca. Eu creio que mesmo nas dificuldades deles, que são muitas, eles estão num processo lento, mas muito emocionante de aprendizado”, afirmou o professor.

Inspirado em outro projeto, denominado “Alfabetização à mesa”, idealizado pelo professor Miguel Picanço, o “Ancestralidade à mesa” tem uma abordagem pedagógica com atividades que envolvem relatos orais, receitas de família, ervas medicinais, saberes da roça e da feira, integrando todas essas experiências ao aprendizado.

Histórias de vida e o projeto “Ancestralidade à mesa”

O professor Carlos explica que a atividade prática, com a mesa posta, ocorre a cada quinze dias, mas que durante todo o tempo que antecede a atividade, ele vai introduzindo o tema em sala de aula.

“A gente começa a semana trabalhando um tema e vai desenvolvendo ele, primeiro com poemas pequenos, depois bilhetes, depois cartas e caça-palavras. E na semana seguinte a gente já prepara o ambiente para a prática. Já fizemos aula prática sobre chibé, milho, legumes da feira e agora a tapioca”, conta.

O professor destaca que os alunos se envolvem sobretudo quando veem que o que estão aprendendo tem relação com sua história. “Eles buscam principalmente essa questão dos laços parentais, dos avós, dos filhos. Vêm muitas memórias”, afirma Carlos.

Relatos e aprendizados dos alunos

“Eu lembro da minha mãe que trabalhava muito com isso, principalmente na Semana Santa. Ela trabalhava muito na roça. Município de Abaeté”, relata Maria Lucimar Neris, de 72 anos, que atribui à metodologia do professor Carlos o aprendizado que alcançou nesses três meses de aula. “Eu estava zerada, agora eu já conheço algumas letrinhas. Já consigo ler ‘tapioca’, ‘farinha’, ‘mandioca’. Algumas palavras eu já acerto”, diz a dona de casa.

Viúva e mãe de dois filhos, ela saiu com 16 anos de Abaetetuba, no interior do Pará, para Belém, mas nunca conseguiu levar adiante os estudos. Afirma que tinha muita dificuldade em aprender.

Assim como ela, Aarão Pereira, de 71 anos, também comemora o aprendizado que teve desde que as aulas começaram. “Eu sou analfabeto, mas chegou esse ano e eu disse: ‘vou estudar’. Estou achando ótimo. Já começo a escrever meu nome, esses nomes pequenos já consigo ler”, afirmou.

Aarão trabalhou durante muitos anos na roça, na cidade de Breves, no Marajó, com produção de farinha, extração de madeira e palmito. Pai de 9 filhos, veio para Belém em busca de tratamento médico para a esposa, que faleceu.

Ele está motivado com a nova fase da sua vida, que começou este ano com as atividades do projeto “Ancestralidade à mesa”. “Eu me sinto feliz. Hoje eu trouxe café, tapioca. A mente da gente fica mais aberta. Eu quero assinar meu nome e ler alguma coisa, porque é ruim a gente não saber nada”, afirma, esperançoso.