
Quando um documentário se torna mais livre e sua aparência se parece, contraditoriamente, mais televisiva, enquanto sua parte mais didática e informativa é mais cinematográfica, há algo de errado desde sua concepção. O normal seria o contrário.
Pode ser a pressa o que faz com que “Ritas“, em sua segunda metade, abandone o interessante mergulho cronológico na inventividade artística de Rita Lee para dar conta das múltiplas Ritas.
Não precisava justificar explicitamente o nome do filme. A própria análise de sua carreira já indicava a multiplicidade criativa de sua personalidade inquieta, no melhor sentido possível. Vemos desde Os Mutantes até a bem-sucedida carreira solo, passando pelas Cilibrinas do Eden, que montou com Lucia Turnbull, pelo Tutti Frutti e outras proezas.
Mas é pelo didatismo na apresentação da carreira de Rita, que o filme procura e por vezes alcança, que este documentário mostra sua maior força.
É superior, por exemplo, ao que está sendo exibido pelo Max, o também recente “Rita Lee: Mania de Você”, -este, sim, um arremedo mal-ajambrado de imagens de arquivo, agradável de se ver, pela artista, mas meio preguiçoso na colagem dessas imagens e das entrevistas com os filhos.
“Ritas” ao menos tem um pensamento, uma procura por entender a riqueza da cantora e compositora, sua contribuição para o rock brasileiro e para a MPB moderna. Com isso, tem também menos ausências sentidas, ainda que as tenha em grande medida, inevitável quando se resume uma carreira tão rica em menos de uma hora e meia.
E nesse aspecto os dois filmes fracassam. Por vezes, os pulos são drásticos. O documentário do Max escamoteia Os Mutantes e os dois discos creditados a ela enquanto estava no grupo, ignora o seu disco mais forte nos anos 1980, “Bom Bom”, de 1983, e o salto artístico pós-Mutantes com o disco “Atrás do Porto Tem uma Cidade”, de 1974, que comprova que Rita Lee havia nascido para altas façanhas.
A Análise de “Ritas” e a Carreira de Rita Lee
Nesse ponto, “Ritas”, por ser mais didático, peca menos. Mas podia pecar ainda menos. Seu material de arquivo é mais artístico do que pessoal e familiar, por isso mais rico para quem deseja entender a força da rainha do rock nacional.
Começa mencionando Os Mutantes, mas ignora, tal como o outro, “Build Up”, o primeiro disco solo de Rita, enquanto ainda estava com a banda, e “Hoje é o Primeiro Dia do Resto de Sua Vida”, disco dos Mutantes creditado à Rita como um presente de Arnaldo Baptista, seu namorado mutante.
Sentimento de culpa? Alguns historiadores diriam que sim, mas o filme nem passa por esse disco de 1972 que é um dos mais fascinantes da música brasileira, cheio de ecletismo e invenção do grupo e de Rita.
“Atrás do Porto”, lançado pela Philips, tampouco é citado no novo longa, mas ao menos ouvimos músicas dele como “Ando Jururu” e “Mamãe Natureza”. A primeira dá a impressão de ser relativa ao disco que foi arquivado, gravado sob o efeito de LSD, mas ela, como a segunda, está no disco oficial.
É como se do disco engavetado a discografia pulasse para “Fruto Proibido”, de 1975, primeiro disco dela pela Som Livre e o estouro definitivo com a faixa “Ovelha Negra”.
A Quebra da Cronologia e os Discos Ignorados
É estranho o abandono da cronologia dos eventos na segunda metade do filme. Os discos vão se acumulando. Pula “Entradas e Bandeiras”, de 1976, mas fala de “Refestança”, o ao vivo de 1977 com Gilberto Gil, e de “Babilônia”, de 1978, a entrada definitiva no pop.
Depois desse álbum -lançado em plena era disco-, pula para “Bom Bom”, de 1983, disco ignorado no outro filme, e depois volta para alguns hits dos LPs que ela lançou entre 1979 e 1982, seu período de maior sucesso de vendas.
E é como se os hits não pertencessem a nenhum LP, mas estivessem soltos em plataformas de streaming. Na época, contudo, o formato LP era muito pensado por artistas e gravadoras.
No disco de 1979, sem título, há uma penca de sucessos: “Chega Mais”, Papai Me Empresta o Carro”, “Doce Vampiro”, “Mania de Você”. Um filme mais preocupado em contextualizar o percurso artístico destacaria essa semi-coletânea involuntária que confirma o caminho pop de “Babilônia”.
O disco de 1980 repete esse sucesso incrível. É o auge da artista, responsável por sua fama inabalável, mesmo nos futuros momentos de menor vendagem. O filme não dá conta da riqueza desse período.
Mas “Ritas” dá conta do principal: mostrar que Rita Lee era, ou podia ser, camaleoa como David Bowie, suave como João Gilberto e Nara Leão, raivosa como Elis Regina e arrojada nos costumes como Ney Matogrosso e Mick Jagger. (Sérgio Alpendre)
RITAS
Quando Estreia nesta quinta (22) nos cinemas
Classificação 14 anos
Produção Brasil, 2025
Direção Oswaldo Santana e Karen Harley