REPORTAGEM ESPECIAL

Histórias que inspiram: catadoras transformam vidas com reciclagem no Pará

Cerca de 31,8 mil toneladas de resíduos foram coletados e destinados para a reciclagem no Pará, em 2023.

Aos 71 anos de idade, Lourdes Santos da Costa tem orgulho da trajetória construída há 14 anos como catadora.
Aos 71 anos de idade, Lourdes Santos da Costa tem orgulho da trajetória construída há 14 anos como catadora. Foto: Irene Almeida/Diário do Pará.

Belém e Pará - Cerca de 31,8 mil toneladas de resíduos foram coletados e destinados para a reciclagem no Pará, em 2023. Um setor que, segundo apontam os dados estimados pelo Anuário da reciclagem 2024, geram um faturamento anual de R$20,8 milhões às organizações de catadores que atuam no Estado. Em todo o Brasil, a soma do total faturado anualmente pelas organizações mapeadas chega a R$1,36 bilhão. Por trás dos números levantados pelo estudo elaborado pelo Instituto Caminhos Sustentáveis, está a atuação diária daqueles que fazem a reciclagem acontecer no país, os catadores de materiais recicláveis.

Aos 71 anos de idade, Lourdes Santos da Costa tem orgulho da trajetória construída há 14 anos como catadora. Dos resíduos garimpados ao longo da vida, a mãe solo conseguiu não apenas garantir o alimento e o sustento para a sua família, como também os estudos da única filha. Uma conquista que, há mais de uma década, ela nem imaginava que seria possível. “Eu não tinha a intenção de trabalhar com reciclagem. Só que eu tinha um costume dos meus pais, que eles gostavam de limpeza”, recorda.

“Então, quando eu colocava o lixo doméstico na rua, eu arrumava tudinho e aí vinham aqueles catadores e abriam, faziam aquela algazarra danada. Aí eu comecei me interessar em tirar a reciclagem, separar do lixo e dar para eles porque eu achava que ficava feio ficar espalhando”.

Um dia, sem que Lourdes esperasse, uma cooperativa de reciclagem se mudou para o seu bairro. Diante da novidade, uma vizinha que passava e a via varrendo a frente de casa e separando os materiais recicláveis decidiu perguntar por que ela não tentava trabalhar como na cooperativa. “Essa vizinha me perguntou: ‘Você não quer ganhar dinheiro? Tu já faz isso de graça, por que tu não faz ganhando?’. Aí eu fui lá, digamos, ver se eu ia me acostumar e pronto. Não saí mais disso”.

Com o conhecimento adquirido na cooperativa, Lourdes não conseguia mais passar pelas ruas, ver uma garrafa plástica despejada e não a recolher. Mais do que um item sem serventia descartado irregularmente, o que ela via era a possibilidade de complementar a sua renda. Mesma renda que a permitiu proporcionar à filha o acesso ao ensino superior.

“Eu tenho uma filha só e ela se formou em serviço social, eu trabalhando em cooperativa. Hoje ela mora no Paraná e trabalha com isso lá, com serviço social”, conta, orgulhosa. “Ela trabalhava numa firma e quando ela quis ir fazer a faculdade, eles disseram: ‘Ou você trabalha ou você estuda’. Aí eu disse: ‘Minha filha, não responda mal. Diga que ela faça o que ela achar que deva fazer, né?’. Aí ela despachou a minha filha. Foi quando eu disse para ela: ‘Você quer estudar de verdade?’ e ela disse que queria. Então vamos ver”.

Lourdes não esconde que os quatro anos tendo que bancar a faculdade da filha não foram fáceis, mas também se orgulha de contar o bom desempenho que ela sempre teve. Ao final da jornada, também foi o dinheiro conquistado com muito esforço através da reciclagem que permitiu que a filha tivesse uma festa de formatura. Uma vitória que não foi apenas dela, mas também da mãe.

“Foi uma luta. Quando eu terminei de pagar tudo, que eu paguei o ano todinho, a festa, eu chorei tanto porque eu fiquei pensando: ‘Meu Deus, eu consegui. Nós conseguimos, né?’. Eu com o dinheiro e ela com o estudo”, lembra. “Foi a coisa mais maravilhosa da minha vida, até hoje. Eu tenho uma única filha e graças a Deus eu consegui dar o que os pais podem dar para um filho, que é só o estudo. Ainda mais que eu sou mãe solo. Um mês antes dela nascer o pai morreu e eu fiquei com essa responsabilidade”.

Histórias de conquistas e reciclagem

As histórias de conquistas através do trabalho com materiais recicláveis se estendem por entre vários catadores cooperados da Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis (Concaves), com sede no bairro do Jurunas, em Belém. Em muitos casos, a coleta e seleção de materiais recicláveis que podem ser enviados para a reciclagem é a oportunidade encontrada para levar comida à mesa, sobretudo entre mulheres chefes de família.

Aldenira dos Santos estava desempregada quando uma vizinha que trabalhava como catadora lhe fez um convite. À época, ela lembra que não entendia nada sobre reciclagem, mas na cooperativa pode aprender tudo o que lhe vem permitindo trabalhar na área já há sete anos. “Eu não sabia nada, nadinha de reciclagem. Eu nunca pensei, eu nunca imaginei como era a reciclagem. Aí eu vim aprender tudo aqui na cooperativa”.

A história dela com o galpão instalado na Avenida Bernardo Sayão já vinha de longa data. Antes, o local abrigava uma fábrica de palmito, local em que não apenas ela trabalhou como a sua própria mãe. Quis o destino que, depois de passados tantos anos, ela retornasse ao local que agora abriga a cooperativa de material reciclável.

Aldenira dos Santos estava desempregada quando uma vizinha que trabalhava como catadora lhe fez um convite.
Aldenira dos Santos estava desempregada quando uma vizinha que trabalhava como catadora lhe fez um convite. Foto: Irene Almeida/Diário do Pará.

“Nessa fábrica eu trabalhei. Eu, a minha família, a minha mãe. Inclusive, a minha mãezinha que já faz 20 dias que faleceu, se aposentou por aqui pela fábrica de palmito. Eu trabalhei 3 anos na fábrica de palmito, depois acabou e, tempos depois, eu voltei para trabalhar com a reciclagem”, conta. “Então, a reciclagem para mim é uma fonte de renda. Eu pago minhas contas, eu compro o meu alimento, o meu vestir, o meu calçar para as minhas filhas. É um serviço que eu gosto de fazer”.

Mais do que a própria renda, Aldenira, hoje com 52 anos, reconhece a importância que o seu trabalho tem também para o meio ambiente. E para quem trabalha com as atenções voltadas para esse tipo de material, não é difícil perceber que muita gente ainda destina de forma incorreta um resíduo que vale dinheiro. “Quando a gente passa, assim, nas valas, a gente vê muito plástico dentro dos rios, das valas, aí entope quando chove, entope tudo. Então, é muito importante a gente fazer esse serviço porque a gente tira o material da rua, do esgoto, a gente limpa o meio ambiente. É isso que a gente faz na nossa reciclagem”.

A trajetória de Zoneide Costa da Silva

O valor do material jogado no lixo por grande parte da população foi reconhecido há muitos anos pela também catadora Zoneide Costa da Silva, 63 anos. Antes de decidir atuar na cooperativa, o que ocorreu há cerca de 10 anos, ela passou 15 anos trabalhando no então lixão do Aurá.“Antes eu trabalhava no lixão. Era difícil porque eu trabalhava à noite. Eu ia 18h e voltava para minha casa 6h da manhã. Eu catava esses materiais todos, levava pra casa, pro meu terreno, daí eu separava como eu estou separando aqui agora”, recorda, ao exemplificar o perigo que ela e outros catadores passavam na época. “Até que o trator me bateu na minha perna, fiquei dois meses em casa, não trabalhava, mas o rapaz me cuidou muito bem”.

O valor do material jogado no lixo por grande parte da população foi reconhecido há muitos anos pela também catadora Zoneide Costa da Silva, 63 anos
O valor do material jogado no lixo por grande parte da população foi reconhecido há muitos anos pela também catadora Zoneide Costa da Silva, 63 anos Foto: Irene Almeida/Diário do Pará.

Foram 15 anos se arriscando entre as montanhas de lixo acumulado até que surgisse a cooperativa. Uma mudança que transformou a sua realidade. “Mudou demais porque lá (no lixão) a gente tinha que prestar atenção em trator, carro. É por isso que eu trabalhava mais de noite, porque não tinha muito esse negócio de carro”, compara. “Aqui tem luva, a gente almoça, tem o nosso descanso até o horário para voltar o trabalho. Aqui a gente é unido. Tudo o que a gente come é dividido. E há 25 anos o meu sustento é do material reciclável. Hoje eu tenho a minha casinha de alvenaria, boazinha, graças a Deus”.

O Cooperativismo e a inclusão social

A importância desse trabalho cooperado é destacada pela presidente da Concaves, Débora Baía. Com uma história também ligada à coleta de material reciclável. Foi através do trabalho na cooperativa que ela conseguiu se formar em gestão ambiental e hoje aplica os conhecimentos adquiridos na própria atividade. “O cooperativismo é uma ferramenta fundamental porque além de integrar sem distinção de raça, de gênero e até mesmo a questão estudantil, é uma oportunidade que a gente tem, principalmente quem não tem possibilidades no mercado formal”, avalia. “A gente tem aqui pessoas mais jovens, assim como nós também temos pessoas com mais experiência, mais idade. Então, a intenção é justamente mostrar esse contraste dessa inclusão social que a cooperativa hoje proporciona”.

A importância desse trabalho cooperado é destacada pela presidente da Concaves, Débora Baía. Com uma história também ligada à coleta de material reciclável.
A importância desse trabalho cooperado é destacada pela presidente da Concaves, Débora Baía. Com uma história também ligada à coleta de material reciclável. Foto: Irene Almeida/Diário do Pará.

Atualmente, 22 pessoas estão associadas à cooperativa que faz a coleta e destinação tanto do papel, quanto do plástico, do vidro, de metais em geral e também eletroeletrônicos. Com o galpão em obras para a melhoria das instalações, hoje a produção está um pouco reduzida em relação ao que costumavam fazer, mas, ainda assim, eles conseguem recolher 45 toneladas de resíduos por mês. “Inclusive, a gente está fazendo um estudo, um levantamento para saber qual é o papel das cooperativas dentro da cidade de Belém nessa gestão de resíduos. Justamente para mostrar que tudo aquilo que a gente coleta de resíduos que poderiam estar indo para lixões e poderiam estar gerando um custo mais alto para a nossa cidade, está se transformando em renda, em inclusão social e, principalmente, está preservando o meio ambiente”.

♻️ Dia Mundial da Reciclagem — 17 de Maio

Instituído pela UNESCO, o Dia Mundial da Reciclagem tem como objetivo conscientizar a população sobre a importância da destinação correta de resíduos e o papel fundamental dos catadores e cooperativas no processo de transformação ambiental e social.


📊

Reciclagem no Brasil – Dados do Anuário 2024

  • Organizações mapeadas: 3.028
  • Municípios atendidos: 1.722
  • Volume estimado de resíduos coletados: 1,68 milhão de toneladas
  • Faturamento total: R$ 1,36 bilhão
  • Redução de emissões: 1,045 milhão de toneladas de CO₂e
  • Renda média dos catadores: R$ 1.305,65

Reciclagem no Pará – Destaques

  • Organizações mapeadas: 78
  • Volume estimado coletado: 31.885 toneladas
    • Papel: 14.969,73 t
    • Plástico: 13.938,73 t
    • Vidro: 1.830,53 t
    • Metais: 1.146,73 t
  • Faturamento anual: R$ 20,8 milhões
  • Renda média dos catadores: R$ 1.064,86