Gerou uma grande repercussão a fase – iniciada esta semana – de depoimentos à Comissão Parlamentar de Inquérito criada no Senado Federal para investigar a atuação de plataformas de apostas esportivas online, a chamada “CPI das Bets”. Ouvidos em dias diferentes, os influenciadores digitais Virginia Fonseca e Rico Melquíades, que acumulam milhões de seguidores nas redes sociais e ganham dinheiro fazendo publicidade de jogos considerados de azar, dividiram opiniões pelos comportamentos adotados nessas oitivas e pelas falas pouco ou nada empáticas sobre o fato de que eles lucram mediante derrota dos usuários desses sistemas, situação que, para milhões de brasileiros, tornou-se um problema de vício com sérias consequências financeiras – a ponto de a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificar esse tipo de ocorrência como um transtorno grave.
A relação entre influenciadores digitais e as plataformas de apostas esportivas tem gerado crescente debate jurídico e ético no Brasil, aponta o advogado Gabriel Barreto, que atua nas áreas do Direito Público e Direito Empresarial. Depois da regulamentação das apostas de quota fixa, por meio da lei federal nº 14.790/2023, surgiram também questionamentos sobre a responsabilidade dos criadores de conteúdo que promovem essas empresas — especialmente quando elas ainda não estão devidamente autorizadas a operar no país. Do ponto de vista legal, anunciar plataformas de apostas não legalizadas pode trazer sérias implicações para o influenciador, confirma o advogado.
“A depender do caso, ele pode responder civil, administrativa e até penalmente por indução à prática de contravenção, nos termos do artigo 50 do Decreto-Lei nº 3.688/1941, além de se enquadrar em infrações ao Código de Defesa do Consumidor, como a veiculação de publicidade enganosa ou abusiva. Mesmo quando a plataforma é legalizada, isso não significa que ‘está tudo certo’. Ainda existem responsabilidades. O influenciador deve verificar se a empresa possui licença válida, respeitar as diretrizes de publicidade que estão sendo definidas pela Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda, e, principalmente, ser transparente quanto à natureza publicitária do conteúdo”, detalha Gabriel.
Tribunais devem reconhecer responsabilidade
Outro ponto relevante, segundo ele, é a distinção entre mera divulgação e indução ao consumo. Embora seja possível divulgar a existência de uma empresa ou serviço de maneira neutra, o problema ocorre quando o influenciador extrapola esse limite e passa a estimular diretamente a prática das apostas, com promessas de lucro, mudanças de vida ou exibição de ganhos irreais.
“Nesses casos, o discurso pode configurar indução ao consumo de alto risco e gerar responsabilidade por danos materiais ou morais, caso um seguidor se sinta lesado ou viciado em decorrência dessa influência. Ainda que a jurisprudência sobre o tema ainda esteja em construção, a tendência é que os tribunais passem a considerar o grau de influência e o conteúdo da mensagem para fins de responsabilização”, alerta.
Responsabilidade e Ética na Publicidade de Apostas
A publicidade disfarçada, ou seja, aquela que não deixa claro de trata-se de conteúdo patrocinado, também é ilegal pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC): o artigo 36 exige que a publicidade seja clara e identificável, e isso se aplica com ainda mais rigor quando se trata de apostas, já que envolvem risco financeiro.
A omissão do caráter comercial da postagem configura má-fé e pode gerar sanções por parte dos órgãos de defesa do consumidor, do Ministério Público e do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). “O uso de hashtags como #publi ou #publicidade não é apenas uma convenção: trata-se de uma exigência para garantir a transparência da relação comercial”, relaciona o advogado.
Consciência pode evitar implicações jurídicas para quem anuncia
Gabriel Barreto entende que influenciadores decididos a atuar nesse nicho devem adotar uma postura responsável e preventiva. Isso envolve verificar a legalidade da plataforma, informar claramente que o conteúdo é publicitário, evitar qualquer promessa de ganho, incluir alertas de responsabilidade e proibição para menores de idade, e não promover apostas como solução financeira são práticas fundamentais.
“O influenciador, por exercer poder de convencimento sobre um público muitas vezes vulnerável, deve compreender que seu papel vai além do marketing – envolve também responsabilidade social. Em um mercado que ainda está sendo regulamentado e cujo impacto social pode ser severo, agir com cautela, ética e transparência não é apenas recomendável: é indispensável”, pressiona.
O que mudou?
Não faz tanto tempo que duas leis federais, uma de 1996 e outra de 2011, baniram quaisquer tipos de propagandas de cigarro e outros produtos de tabaco dos meios de comunicação brasileiros. O motivo é mais que justificável: impedir o estímulo do uso de itens altamente nocivos à saúde humana, já que o fumo é associado a doenças pulmonares, cânceres e outros males inclusive fatais.
Levando em consideração que o vício em “bets” e jogos de aposta online tem afetado cada vez mais famílias, o mercado de trabalho e até mesmo a economia, é curioso tentar entender como algo desse tipo pode ser considerado aceitável nos dias de hoje.
“Sempre me pergunto sobre o papel da mídia de um modo geral e, principalmente da internet, no reforço do que estamos vendo com a proliferação de propagandas das ‘bets’. É um fenômeno preocupante, mas previsível dentro do ecossistema digital atual”, avalia o jornalista, professor e coordenador do curso de Comunicação Social da Universidade da Amazônia (Unama), Mário Camarão.
O estudioso explica que a internet criou um terreno fértil para influenciadores, que já vendem estilos de vida e validações sociais, se associarem a plataformas de apostas, promovendo não só o jogo, mas a ideia de que ganhar dinheiro rápido é possível, fácil e até glamouroso. “Basta ver os vídeos e fotos dos bens ‘conquistados’ postados por eles nas redes sociais”, justifica.
O perigo da normalização
Para Camarão, historicamente, o Brasil já entendeu os riscos da normalização de certos hábitos por meio da propaganda, e aí entra o caso do cigarro, da bebida alcoólica e do jogo do bicho. Todos foram, em algum momento, combatidos ou regulamentados com base no impacto social e nos danos potenciais à saúde pública ou à ordem legal. Para o educador, o que causa estranheza hoje é que, mesmo sem uma regulamentação clara e definitiva sobre as apostas online, observa-se uma aceitação quase ingênua da presença dessas marcas nos canais de grandes influenciadores, inclusive com público jovem e até adolescente.
Para o professor é um problema, do ponto de vista da comunicação, que esse tipo de publicidade normalize a aposta como entretenimento comum, sem considerar o impacto psicológico e social que ela pode causar, especialmente entre jovens e pessoas em situação de vulnerabilidade financeira.
“A grande mídia também sucumbiu as ‘bets’. É importante destacar que a presença das bets não se limita às redes sociais. Elas estão amplamente inseridas na grande mídia, especialmente no esporte. Estádios, uniformes, comerciais em horário nobre. As casas de apostas têm ocupado espaços que antes eram exclusivos de marcas tradicionais. Essa exposição massiva dá um tom de legitimidade ao setor, mesmo enquanto a regulamentação ainda está em debate no Senado”, pondera.
Como quase todos os problemas que envolvem a “rede mundial de computadores”, a aceitação se dá, em parte, por uma lacuna na regulação digital. Ao mesmo tempo, Mário Camarão visualiza a naturalização do discurso do “empreendedorismo de si”, que vende a ilusão de controle, meritocracia e sucesso fácil.
“É aí que entra a discussão sobre o conteúdo que hoje circula nas redes sociais e na mídia em geral, em que não se estabelece um filtro ético e crítico sobre as ‘bets’. Aqui, a comunicação se torna cúmplice da desinformação e da romantização de práticas que podem gerar vício, endividamento e frustração. Sintomático e lamentável”, conclui.