Hoje vou fazer diferente e escrever um perfil. E a vítima é um camarada que nasceu em Lisboa, é licenciado em Direito e, de vez em quando, bem contraditório.
Tava aqui pensando se entrego o nome do rapaz. Se sim, muitos vão logo reconhecer, caso contrário, vai parecer que tô em cima do muro….
Já falei que ele é lisboeta. Mais um detalhe: é difícil não encontrá-lo em uma balada, em qualquer dia da semana.
Vou cometer uma indiscrição: o rapaz vive às custas da mãe e também “escorado” em amigos da alta sociedade. E, pra escandalizar, tem momentos que é um revolucionário raiz e, logo em seguida, um conservador chato.
Resumindo esta ópera pseudo-barroca: é um bon vivant que tem a vida que muitos adorariam ter mas preferem o comodismo e ser “bem falados” por esta mesma sociedade.
Mas decidi abrir o jogo: ele se chama João da Ega (tomara que ele não leia isto…). João de que? Da Ega, o primeiro e único. Ele costuma descrever-se num português quase camoniano.
Lê aí e me diz se dá pra acreditar: “a sua figura engrouviada e seca, os pelos do bigode arrebitado sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito”.
Aqui entre nós, mas parece mentira: o rapazola saiu de (ou entrou em) um livro do século XIX, né? Pior que é verdade: João da Ega é um dos principais personagens do romance “Os Maias”, de Eça de Queiroz.
Eça de Queiroz e João da Ega: Reflexões e Alter Ego
E por que dei essa enrolada básica pra falar de um personagem se posso discorrer sobre uma personalidade real e reconhecida como das maiores em Língua Portuguesa, tanto em Portugal quanto no Brasil? Esta é fácil: o próprio Eça de Queiroz referia-se a João da Ega como um alter ego.
É lógico que o bom vivant Ega representa apenas alguns dos traços da personalidade de Eça (e não é que os nomes são quase o mesmo?). Mas a vida boêmia, as viagens pelo mundo e o olhar afiado para as situações mais pitorescas do cotidiano são o Ega do Eça.
A obra de José Maria de Eça de Queiroz é tão especial que, ainda nos dias de hoje, monografias em universidades, séries e filmes baseados na obra dele fazem parte de nossas vidas. Foi um intelectual de alto gabarito, diplomata e que representou Portugal na Inglaterra e em Cuba.
Eu o descobri aos 12 anos, assistindo a série “O Primo Basílio”, e de lá pra cá, fui desbravando as milhares de páginas de “O Mandarim”, “A Ilustre Casa de Ramíres”, “A Tragédia da Rua das Flores”, “A Relíquia”, “O Crime do Padre Amaro” e “Os Maias”, dentre muitos outros.
A Descoberta em Póvoa de Varzim
Esse desbravar foi como estar uma um mar azul, como aquele de Póvoa de Varzim, o concelho, do Porto, onde Eça nasceu em 1845. Não perdi a oportunidade e fui até lá conhecer esta história de perto.
É comovente a forma como os poveiros tratam o filho ilustre. A casa onde ele nasceu, na Praça da Almada, o largo em frente, a praça com o monumento em homenagem ao escritor e suas obras.
E um detalhe interessante: a placa que identifica o berço do romancista está com todas as letras: “A Eça de Queiroz. 1845-1900. Homenagem de portuguezes residentes no Brazil”.
José Maria de Eça de Queiroz está para a literatura portuguesa assim como Machado de Assis para a brasileira: dois espadachins sempre prontos a perfurar, expor as vísceras da hipocrisia e sempre com refinados elegância e humor caústicos.
Do contrário, qual o motivo de, lá pelas tantas, ele escrever: “não tenho medo de pensar diferente dos outros. Tenho medo de pensar igual e descobrir que todos estão errados”?
*Sérgio Augusto do Nascimento é um jornalista paraense que vive em Portugal. Foi repórter e editor e hoje é correspondente do DIÁRIO na Europa.