MEDIUNIDADE

Mediunidade pode ter base genética, aponta estudo brasileiro

O trabalho inédito identificou padrões genéticos associados à mediunidade. Entenda!

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 A neurociência parece finalmente estar se rendendo ao estudo da religião e da espiritualidade. De acordo com um artigo do neuropsicólogo Jordan Grafman, professor da faculdade de Medicina da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, publicado na revista Nature ano passado, cientistas interessados em estudar o cérebro tendem a evitar esses temas por medo de serem vistos como “não científicos”. No entanto, esse cenário está começando a mudar.

A mais recente evidência sobre o assunto é um estudo brasileiro, publicado na revista Brazilian Journal of Psychiatry. O trabalho inédito identificou padrões genéticos associados à mediunidade, experiência espiritual onde os indivíduos alegam comunicar-se ou ser influenciados por pessoas falecidas ou entidades.

A mediunidade é uma prática comum em religiões como umbanda e espiritismo. Mas ela não se restringe à religião, estendendo-se para indivíduos que se identificam como ateus ou agnósticos. Uma pesquisa recente realizada pelo grupo mostrou que 94% dos brasileiros relataram ao menos uma experiência espiritual profunda em suas vidas, como sentir conexão com o divino ou experiências fora do corpo. E o fenômeno não é exclusivo do país.

Um estudo britânico revelou que mais de 20% das pessoas relataram ter visto indivíduos falecidos, enquanto mais de 15% afirmaram ter ouvido vozes que outros não conseguiram.

O fenômeno frequentemente é alvo de ceticismo, sendo até mesmo associado a doenças mentais, como esquizofrenia. Entretanto, um conjunto robusto de pesquisas indica que a maioria dos indivíduos que apresentam tais fenômenos não tem sinais de transtornos mentais. Pelo contrário.

Um trabalho realizado pela mesma equipe brasileira, publicado ano passado, analisou a saúde mental do mesmo grupo de médiuns do estudo genético, em comparação com a de seus parentes de primeiro grau. Os pesquisadores não encontraram evidências de psicose ou qualquer outro transtorno mental entre os médiuns, que apresentaram ajustamento social e qualidade de vida semelhantes ou melhores que os de seus familiares.

– Um fato é que a mediunidade existe. Existem vários estudos antigos, inclusive alguns do meu instituto, mostrando que as previsões e informações trazidas por médiuns são muito precisas e motivos banais não as explicam. Os médiuns acertam mais do que o acaso permitiria – diz Wagner Gattaz, professor titular de psiquiatria e diretor do laboratório de neurociências da USP e coordenador do novo estudo.

No trabalho recente, cientistas do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) e do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (Nupes) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) buscaram avaliar se a mediunidade está ancorada no DNA.

– Existem diferenças individuais na sensopercepção. Por exemplo, algumas pessoas têm um olfato ou uma audição extremamente apurados. Nesse sentido, os médiuns podem ter uma sensopercepção mais forte que a maioria das pessoas sobre o que está acontecendo ao nosso redor. Então partimos da hipótese que se for verdade que os médiuns são pessoas com um filtro mais poroso, isso deve estar ancorado no DNA, como tudo – explica Gattaz.

Para isso, eles compararam o exoma – sequenciamento dos genes que expressam proteínas – de 54 médiuns com o de parentes de primeiro grau que não tinham habilidades mediúnicas. Segundo Gattaz, foi escolhido o exoma porque ele corresponde a apenas 1 a 2% do genoma, mas é responsável pela codificação de 85% das proteínas vitais. Por exemplo, modificações genéticas relacionadas a doenças geralmente estão lá.

De acordo com os pesquisadores, a escolha em comparar os médiuns com parentes de primeiro grau é que essas pessoas cresceram sob as mesmas condições, têm o mesmo repertório cultural e compartilham boa parte do DNA.

Os resultados mostraram cerca de 16 mil variantes encontradas exclusivamente em médiuns, que provavelmente impactam a função de 7.269 genes. Além disso, foram identificados 33 genes que apresentam variações em pelo menos um terço dos médiuns estudados, mas que não foram detectados entre os familiares.

– Grande parte desses genes são ligados aos sistemas imune e inflamatório, que respondem às interações do meio ambiente com o nosso ambiente interno. Além disso, esses dois sistemas atuam profundamente no funcionamento do cérebro – pontua Gattaz. – É interessante que esses genes podem ter outras funções, além das específicas no sistema imune. Um deles, por exemplo, é mais expresso na glândula pineal, que ao longo da história foi associada à interação da alma com o corpo.

Os pesquisadores acreditam que essas alterações genéticas podem estar associadas a uma maior permeabilidade do filtro cerebral, permitindo que os médiuns percebam aspectos da realidade que não são acessíveis à maioria das pessoas – mas essa é uma hipótese que ainda precisa ser confirmada.

O próximo passo, de acordo com Alexander Moreira-Almeida, da UFJF, é testar esses 33 genes em futuras pesquisas que investiguem experiências espirituais para validar os resultados.

– As vantagens de identificarmos alguns genes é podermos estudar os mecanismos cerebrais e da sensopercepção por trás desses genes. Vamos conhecer melhor não só a realidade do nosso mundo, mas o funcionamento do nosso cérebro – avalia Gattaz.

Embora esse estudo tenha se dedicado a analisar a mediunidade, sendo a maioria dos participantes da umbanda ou do espiritismo, inúmeros trabalhos se dedicam a estudar diferentes religiões e crenças. Por exemplo, uma pesquisa da Universidade de Utah com mórmons descobriu que a religião ativa o núcleo accumbens bilateral, bem como os loci corticais pré-frontais de atenção frontal e ventromedial. Essas áreas cerebrais de processamento de prazer e recompensa também ficam ativas quando nos envolvemos em atividades sexuais, ouvimos música, jogamos e usamos drogas.

Essas descobertas vão ao encontro de estudos anteriores que descobriram que o envolvimento em práticas espirituais aumenta os níveis de serotonina, que é o neurotransmissor da “felicidade”, e de endorfinas.

Outro trabalho, que avaliou o cérebro de budistas durante a meditação e freiras católicas durante uma oração, descobriu uma atividade aumentada nos lobos frontais do cérebro, áreas associadas a um maior foco e atenção, habilidades de planejamento, capacidade de projetar o futuro e de construir argumentos complexos.

Além disso, as duas práticas se correlacionam com uma redução da atividade nos lobos parietais, responsáveis pelo processamento da orientação temporal e espacial. As freiras, no entanto – que oram usando palavras – mostram maior atividade nas áreas de processamento da linguagem dos lobos subparietais.

Outro trabalho, liderado por investigadores do Brigham and Women’s Hospital, ligado à Universidade de Harvard, descobriu que a aceitação espiritual está associada a um circuito cerebral específico centrado na substância cinzenta periaquedutal. Essa região do tronco cerebral tem sido implicada em várias funções, incluindo condicionamento do medo, modulação da dor, comportamentos altruístas e amor incondicional.

Estudos que utilizam imagens de ressonância magnética cerebral funcional (fMRI) indicam que as regiões cerebrais afetadas por práticas e experiências religiosas e espirituais frequentemente são as mesmas moduladas durante meditações de atenção plena. Isso é importante porque práticas como a meditação são usadas para lidar com a dor e o vício, por exemplo.

No artigo da Nature, Grafman afirma que “compreender melhor os processos cerebrais associados à religiosidade e espiritualidade pode fornecer ferramentas extras para tratar condições como dor e vício”. Além disso, ele acredita que entender a religiosidade e a espiritualidade pela neurociência “é crucial para a compreensão do cérebro humano – e da vida humana”.