
O esperado encontro entre Donald Trump e Volodimir Zelenski em Washington foi marcado por uma tensa troca de acusações entre os presidentes acerca da Guerra da Ucrânia. Houve bate-boca aos gritos entre os líderes, uma cena nunca vista ao vivo na Casa Branca, com o americano exigindo que o visitante aceitasse uma trégua com Vladimir Putin.
Após a altercação pública, as conversas foram cortadas e a prevista entrevista coletiva conjunta com Trump, cancelada. Em rede social, o americano disse que o ucraniano “não está pronto para a paz”. “Ele pode voltar quando estiver pronto para a paz”.
Na abertura da primeira reunião entre eles após o americano voltar ao poder, nove dias depois de Trump chamar Zelenski de ditador dispensável, o ucraniano cobrou uma posição mais incisiva do anfitrião que basicamente alinhou-se à visão de Putin sobre o conflito, acusando Kiev de tê-lo provocado.
“Você disse que chega de guerra. Eu acho que é muito importante dizer essas palavras para Putin lá no começo, porque ele é um assassino e um terrorista”, disparou Zelenski.
“Eu sou a favor da Ucrânia e da Rússia”, disse um assustado Trump, que depois foi ao ataque, dizendo que Zelenski estava “jogando com a Terceira Guerra Mundial” ao buscar opor os EUA e o Ocidente à Rússia. “O que você está dizendo é desrespeitoso com esse país”, gritou, com dedo em riste.
A temperatura subiu ainda mais com a intervenção do vice de Trump, J.D. Vance, que cobrou o visitante: “Você já disse obrigado?”. “Eu acho desrespeitoso você vir aqui no Salão Oval e dizer essas coisas em frente à mídia americana”, completou. A embaixadora ucraniana nos EUA, Oksana Markarova, afundou a cabeça entre as mãos na plateia.
“O seu país está em apuros. Você não está ganhando”, disse. “Nós demos US$ 350 bilhões a vocês, se vocês não tivessem nosso material militar, teriam perdido em duas semanas. Vocês têm de mostrar gratidão”, disse o presidente americano, cobrando um cessar-fogo e exagerando em três vezes o apoio dado pelos EUA a Kiev.
Trump disse que “eu empoderei você para ser um valentão, mas você não acha que pode ser um valentão sem os EUA”. “Seu povo é muito corajoso, mas você ou fará um acordo ou nós estamos fora. E se nós estivermos fora, você vai perder”, disse.
“Você não está em posição de ditar como nós vamos nos sentir”, afirmou o americano, retrucando uma admoestação de Zelenski. “Você não tem cartas agora, você está jogando com a vida de milhões, com a Terceira Guerra Mundial”, disse.
Ao fechar a reunião a jornalistas, inclusive um repórter da agência russa Tass que foi expulso por não ter credenciamento para estar lá, Trump disse: “Isso vai dar boa televisão, hein?”.
Antes do bate-boca, o clima estava tenso, mas com momentos de descontração. “Olhem, ele está todo arrumado!”, disse Trump ao receber às 11h23 (13h23 em Brasília) o homólogo em sua quinta visita à sede do governo americano.
Zelenski usava a roupa de inspiração militar, que visa emprestar-lhe uma aura de líder em guerra, que adotou desde o início do conflito se o americano estava sendo irônico, é incerto.
Na fala inicial, Zelenski buscou explicitar seus pontos. “Putin começou essa guerra. Ele tem de pagar”, afirmou, retrucando a afirmação de Trump anterior de que Kiev iniciou o conflito ao buscar ingressar na aliança militar ocidental, a Otan, uma linha vermelha geopolítica para o Kremlin.
“Queremos saber o que os EUA estão dispostos a fazer”, disse. Trump foi evasivo, dizendo que “não é alinhado a Putin, e sim aos interesses dos Estados Unidos e do bem do mundo”. Ele não se encontrava pessoalmente com Zelenski desde dezembro, quando ainda era apenas presidente eleito.
Ao mesmo tempo, o americano sinalizou manter a proximidade que deseja com o russo, dizendo que “Putin quer o acordo” de paz.
Como pano de fundo do encontro está o acordo para a exploração de minerais estratégicos da Ucrânia, que Trump usou como um artifício para pressionar Kiev a conversar em seus termos. De uma tomada de meio trilhão de dólares das riquezas ucranianas, o texto virou algo vago sobre parcerias e a montagem de fundo para a reconstrução local.
Como já havia ficado claro, nada de garantias de segurança americanas para bancar a paz. Trump, contudo, sinalizou na abertura do encontro que “vamos continuar enviando armas para a Ucrânia”. Só que, afirmou, “espero não precisar de muito”.
A reunião foi marcada após o tumulto geopolítico causado por Trump quando ligou para Putin e iniciou negociações bilaterais sobre a Guerra da Ucrânia e a normalização da relação entre Rússia e EUA, invertendo o sinal da política americana para a crise.
Nessas duas semanas, russos e americanos se encontraram duas vezes ao vivo, Trump chamou Zelenski de ditador sem eleições e o considerou dispensável por atrapalhar acordos, além de pressionar pelo acordo de exploração mineral sem embutir garantias de segurança pós-trégua a Kiev.
Mordeu, mas assoprou também, ao receber o francês Emmanuel Macron e o britânico Keir Starmer, moderando um pouco sua retórica mas mantendo os pontos essenciais, e ainda buscando vantagens do acesso a minerais estratégicos para a indústria de alta tecnologia, como terras raras.
Zelenski ficou encurralado, e recebeu dos parceiros europeus promessas de uma elevação substancial da ajuda e a oferta de uma força de paz em caso de cessar-fogo. É o desejo de Trump em curso: o americano quer se desengajar da Europa.
O problema é que Putin não aceita a presença de forças de países da Otan na Ucrânia, aliás seu “casus belli” central em 2022. Nesse quesito, Trump concorda que Kiev não deve ser admitida no clube. Em relação à ajuda, a coisa complica no detalhamento dos números.
Usando o rastreador mais acurado da praça, do Instituto para a Economia Mundial de Kiel (Alemanha), a União Europeia e países do continente deram 132 bilhões a Kiev, mas o grosso disso é dinheiro. Já os EUA enviaram 114 bilhões, 56% do volume em ajuda militar.
Os europeus simplesmente não têm indústria bélica capaz de suprir toda a necessidade da Ucrânia no caso de a guerra continuar, mas podem fazê-lo num cenário de trégua. Poderiam, claro, comprar produtos americanos, mas essas triangulações são legalmente complexas.
Em relação ao acordo mineral, Trump desistiu de sua fantasia de US$ 500 bilhões do subsolo ucraniano para compensar o valor dado, sem prometer nada no futuro. E descartou garantias americanas.
Mas conseguiu um compromisso de exploração conjunta, o que de todo modo vai demorar anos e com incertezas, dado que boa parte das reservas de Kiev está em território sob controle de Putin no leste do país.
Agora, tudo isso fica também em suspenso com a debacle da cúpula.
IGOR GIELOW