
Matheus Colares do Nascimento
A guerra na Ucrânia acelerou um processo de militarização da economia europeia que vinha se constituindo lentamente há duas décadas. Em 2007, o orçamento militar dos países membros da União Europeia (EU) pulou de 6,5 bilhões de euros para 19,5 bilhões. De 2022 para 2023 o orçamento militar europeu cresceu 21.3%, incluindo países não-membros como o Reino Unido e a Noruega. Em números totais, em 2023 o montante desse orçamento chegou a 366.623 bilhões de euros. Com esse montante, o orçamento europeu se torna o segundo maior do mundo; três vezes maior que o da Rússia, sobrepassando a China e ficando apenas atrás dos EUA.
Como veremos, a reconversão da Europa em uma zona militarizada está intimamente ligada ao estreitamento da relação de vassalagem que o continente mantém com o seu patrono, os EUA. Apesar disso, na mídia e no imaginário delirante do europeu médio, a retomada dos gastos militares encontra a sua justificativa na escalada das tensões com o seu vizinho do oriente, a Rússia que, ironicamente, direciona um montante três vezes menor para o setor. Atualmente na sociedade europeia, predomina a crença de que a Rússia nutre interesses expansionistas em direção ao oeste com o objetivo de agrupar o espaço pós-soviético sob a sua esfera de influência e, até mesmo, ameaçar a integridade política europeia. Além disso, frente às declarações desengajadas do recém-eleito presidente dos EUA, Donald Trump, sobre a guerra da Ucrânia, os ideólogos belicistas da democracia liberal europeia reforçam este discurso, afirmando que a Europa deve fortalecer o seu setor de defesa, tendo em vista a retirada – mesmo que parcial – estadunidense do teatro de operações ucraniano.
Ora, tendo em vista os números em gastos militares mencionados e a história recente das relações entre OTAN, Europa e Rússia, essa narrativa nem sequer tangencia a realidade. Como a Rússia poderia invadir a Europa que, além de ter um gasto militar três vezes maior que o seu, ainda está sob proteção dos EUA? Além disso, convém lembrar que Putin até 2010 propunha a criação de um corredor de cooperação econômica que conectasse a Rússia e Europa “de Lisboa a Vladvostok”. Que tipo de ameaça é essa? Está claro que retratar a Rússia como vilã na história é parte de uma estratégia geopolítica mais ampla que cria uma narrativa de inimizade para justificar o avanço de certos interesses.
Em um primeiro plano, o interesse por trás da remilitarização da economia europeia é a sua recuperação que desde o início da guerra vêm afundando. Isso se dá a partir da introdução de uma economia política convencionalmente chamada de keynesianismo militar. Para Keynes, em períodos de desaceleração econômica a demanda agregada da economia tende a entrar em uma espiral de retração.
Períodos de recessão instauram uma situação de incerteza generalizada que altera o perfil de consumo da população. Frente à incerteza do futuro, afirma Keynes, as famílias diminuem o consumo de bens industriais e aumentam a sua preferência pela liquidez. As famílias preferem vincular os seus gasto a mecanismos que transfiram o seu poder de compra para o futuro para, dessa forma, garantir algum colchão de segurança financeira frente à adversidade. A preferência pela liquidez diminui a demanda agregada por bens industriais, haja vista que, os ativos líquidos não são necessariamente reinvestidos no setor produtivo. Dessa forma, o setor produtivo vê uma queda nas suas vendas.
Atualmente, a Europa passa por uma situação de incerteza com relação ao futuro, o que leva as famílias a frearem os gastos. Somado a isso, a crise energética provocada pelas sanções contra a Rússia come uma parte ainda maior do orçamento das famílias que, novamente, deixam de destinar essa parte para o consumo de produtos industriais. Por fim, a crise energética também impacta a produção industrial europeia ao encarecer os seus produtos fazendo com que, assim, eles percam competitividade.
Segundo Keynes, em situações de retração de demanda agregada, o Estado deve intervir com uma política monetária expansionista a partir da compra governamental. Isto é, o Estado simplesmente cria moeda nova espontaneamente para financiar o lucro do setor produtivo, isto é, dar vazão ao excedente não absorvido pela demanda. Dada a alta conversibilidade da capacidade produtiva das economias industrializadas, há duas formas principais de dar vazão a esse excedente: investimentos em infraestrutura e investimentos militares. O keynesianismo militar exclui como alternativa os investimentos em infraestrutura.
Fundamentalmente, isso se deve porque o investimento em infraestrutura proporciona diversos benefícios tais como a construção de escolas, hospitais, estradas, ferrovias etc.; que entregam uma melhor qualidade de vida para a classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, a empodera. O investimento no setor militar é a alternativa mais sórdida, porque cumprem o mesmo papel de recuperar as bases do poder político econômico das classes dominantes, sem, porém, conceder os mesmos benefícios à classe trabalhadora. Mas, além disso, também possibilitam a essas mesmas classes perseguirem seus interesses geopolíticos.
Esse é claramente o perfil da política econômica da UE. Durante os últimos anos, os gastos militares vêm cada vez mais ganhando prioridade com relação aos gastos em infraestrutura e benefícios sociais. Em 2020, frente à catástrofe global da pandemia da COVID-19, a UE lançou um fundo de recuperação de 750 bilhões de euros, dos quais 120 destinados à Itália. Com a deflagração da guerra da Ucrânia, o governo alemão destinou imediatamente 100 bilhões de euros em ajuda em forma de dívida nova.
No entanto, os interesses geopolíticos por trás dessa política econômica não são os interesses europeus, uma vez que a Europa está longe de ser ameaçada pela Rússia. A situação de inimizade criada para justificar esse investimento beneficia mesmo os EUA que historicamente interferiram várias vezes para impedir alianças geopolíticas Euroasiáticas com o objetivo de enfraquecer e fragmentar o continente e a sua relação com a Rússia, um potencial parceiro estratégico. O resultado geopolítico disso é um distanciamento entre Rússia e Europa. Alternativamente, a Europa se aproxima dos EUA e torna-se cada vez mais dependente economicamente dos seus recursos energéticos.
Por outro lado, como se mostrou nos últimos anos, a Rússia foi naturalmente conduzida para uma parceria estratégica com a China. Tal parceria – assim como o fortalecimento do seu mercado interno – possibilitou à Rússia um fortalecimento econômico e diplomático sob nova orientação. Na Europa, o cenário é totalmente o contrário, mostrando assim que talvez os objetivos da guerra na Ucrânia fossem mais enfraquecer política e economicamente a Europa que se viu arrastada novamente para a tutela dos EUA, do que propriamente derrotar a Rússia que parece estar muito bem obrigado.
Fundamentalmente, isso parece explicar as recentes declarações de Donald Trump sobre o fim da guerra, as quais sobrepassam completamente qualquer margem de agência para a Europa no desfecho do conflito. O objetivo acima já fora alcançado, agora os EUA podem se retirar do conflito e parar de fornecer armas à Ucrânia. Com a militarização da sua economia, a Europa poderá assim se curvar completamente aos interesses dos EUA na região e continuar a guerra por si só, atrelando a viabilidade da sua economia à guerra. Assim, se garantirá que os objetivos dos EUA na região de manter Europa e Rússia distantes sejam perseguidos não mais pelos próprios EUA, que tem outros problemas para tratar, mas sim pela própria Europa.
A Europa, nesse sentido, como maior prejudicada com o próprio conflito que ela ajuda a manter, se consagra como colônia premium dos EUA à serviço dos seus interesses, não importando o fato de estes interesses serem contrários aos seus próprios. Nesse sentido, a militarização da economia europeia está em continuidade com as sanções impostas à Rússia inicialmente, ambas são políticas de autodestruição.