Para a psicanalista Jacqueline Rose, autora de “A Peste: viver e morrer no nosso tempo” (Fósforo, 2024), a pandemia de Covid-19 criou uma cisão entre os que a viveram e os que não a viveram. E essa cisão vai se aprofundar. Isso porque, diz ela, a relação com a morte mudou radicalmente nesse período.
É parecido, segundo a autora, com o que Sigmund Freud diz sobre a 2ª Guerra Mundial: a morte não era mais vista como um acidente ou uma doença a ser evitada, mas parte do tecido da vida cotidiana.
Com as restrições de circulação impostas durante a pandemia, muitos rituais de luto ficaram interditados. “Não tínhamos permissão para fazer os rituais da morte e também não tínhamos o tempo necessário para morrer”, diz Rose. Ela cita uma enfermeira inglesa que, questionada pelos pacientes se eles morreriam naquele dia, conseguia dizer apenas “hoje, não”.
As valas comuns e as cremações coletivas eram comuns ao redor do mundo naquele momento. Para a psicanalista, “havia a sensação de que você não morria a sua própria morte”.
É uma ideia que ela explora em um dos cinco ensaios de “A Peste”. O livro, lançado em 2022 na Inglaterra e traduzido no Brasil neeste ano, é uma reunião de cinco ensaios, nos quais a autora flerta com a narrativa de livro homônimo, do argelino Albert Camus, e explora a ideia de justiça para a filósofa francesa Simone Weil.
Em um dos ensaios, Rose explora a origem do conceito de pulsão de morte, criado por Sigmund Freud a partir da experiência de perder a filha caçula para a gripe espanhola. “É a ideia de que o organismo quer morrer da sua própria maneira”, diz Rose, “e se você é levado por um ciclo generalista, impiedoso e descuidado, você se torna uma estatística”.
Segundo a psicanalista, “isso levanta a questão de como a cultura lida, ou não lida, com a integração da vida com a morte e a memória”.
A dureza da pandemia, para Rose, também se mostrou em outras estatísticas, como o aumento alarmante dos casos de violência doméstica. “A vulnerabilidade, o medo da morte e o fato que ninguém poderia te proteger daquilo é uma das coisas que levou ao aumento da violência contra as mulheres”, diz ela, que escreveu também “Sobre a Violência e Sobre a Violência Contra as Mulheres”, também publicado no Brasil pela Fósforo.
Ela faz a tal afirmação citando seu livro “Motherhood”, ainda sem tradução no Brasil, para articular a ideia de que existe a ilusão de que as mães vão tornar o mundo um lugar seguro. A Covid, afirma a psicanalista, destruiu essa ideia e gerou uma frustração canalizada para a figura feminina.
Essa foi, segundo Rose, uma das reações à pandemia, mas houve outras. Houve quem decidisse que o cuidado e a valorização dos serviços essenciais era o caminho. Ela lembra lugares que aplaudiam os enfermeiros nas janelas durante o isolamento social.
Outra reação desencadeada pela pandemia foram os desafios impostos por aquela realidade. Ela cita o momento em que Donald Trump, eleito novamente neste ano para ocupar a presidência dos Estados Unidos depois de perder a corrida 2020, arrancou a máscara do rosto. “Foi um ato de negação e de desafio”, diz Rose. Mas, na época, ela avalia que as pessoas não abraçaram aquela atitude e penderam para a candidatura de Joe Biden, um homem que tinha lidado com a perda e o luto da mulher e um filho.
Agora, uma segunda reação se desdobra, segundo a autora. Biden foi visto como frágil e sua candidatura à reeleição para a Casa Branca foi descartada. “Ele estava dando sinais de que, como todos nós, vai morrer um dia”, diz. “Sua fragilidade foi uma ofensa digna de punição.”
O que ela acha é que a tolerância geral para a ideia da morte flutua com o passar do tempo. Se antigamente era comum que as pessoas morressem em casa e fossem até veladas nas residências, hoje existe um distanciamento maior nas sociedades ocidentais. Essa separação, diz Rose, tem a ver com o paradigma do crescimento contínuo dos ideais neoliberais.
Passada a pandemia, a relação com a morte aparece mudada em outros cenários. Agora, as guerras em Gaza e na Ucrânia materializam a percepção de que o trauma está acontecendo, mas ainda não se assentou. “Parece que o medo legitimou a violência em qualquer forma e grau imagináveis”, ela diz, em referência aos ataques de Israel na Faixa de Gaza, “e parece que circula a ideia de que as pessoas que fazem isso vão sair impunes”.
O caminho para um mundo onde há um respeito maior pela morte e, consequentemente, pela vida, é possível, diz Rose. “Acho que a literatura e a escrita são lugares em que isso acontece”, afirma. “Mas a questão é: até que ponto é possível?”
A PESTE
- Preço R$ 79,90 (160 págs.); R$ 55,90 (ebook)
- Autoria Jacqueline Rose
- Editora Fósforo
- Tradução Flávia Costa Neves Machado
BÁRBARA BLUM/SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)