Sucessivos calotes do prefeito de Ananindeua, Daniel Santos, ameaçam levar à suspensão do atendimento de pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) pelo Anita Gerosa, um hospital sem fins lucrativos com mais de 60 anos e que atende, principalmente, a população mais pobre. É a única maternidade da cidade que atende gestação de alto risco e possui unidade de cuidados intensivos específica para mamães e bebês.
Mesmo assim, segundo o portal Transparência, até o último dia 21 o prefeito ainda não havia pagado os serviços do Anita Gerosa de agosto, setembro, outubro e novembro. E nem a verba para pagamento do piso nacional dos profissionais de Enfermagem, dos meses de outubro, novembro e dezembro, além do 13º. Com isso, é possível que a dívida da Prefeitura com o hospital já ultrapasse R$ 3,1 milhões, só deste segundo semestre.
Segundo informações nas redes sociais, não confirmadas oficialmente, a maternidade do hospital deixará de atender o SUS a partir de 26 de janeiro. Tudo porque, desde pelo menos 2022, a Prefeitura recebe o dinheiro do SUS para pagar esses serviços, mas só repassa ao hospital com vários meses de atraso, informa o o portal da Transparência. Caso se confirme a suspensão do atendimento aos pacientes do SUS, é possível que o Anita Gerosa acabe até fechando, já que o SUS é a principal fonte de recursos do setor hospitalar.
Se isso ocorrer, será o segundo hospital a fechar as portas em Ananindeua, na administração de Daniel Santos, uma “coincidência” que provoca suspeitas na cidade. Porque um dos beneficiados pela redução da concorrência é o Hospital Santa Maria de Ananindeua, do qual o prefeito, que é médico, foi sócio por mais de 10 anos.
Nos registros da Junta Comercial do Pará (Jucepa), Daniel deixou o Santa Maria em maio de 2022. Mas, no Ministério Público do Pará (MPPA), há suspeitas de que ele se tornou “sócio oculto” da empresa: permaneceria dando as cartas por lá, embora formalmente afastado. E os xis do problema é que Ananindeua possui “gestão plena” do sistema municipal de Saúde. Isso significa que a prefeitura recebe esses recursos do SUS “fundo a fundo”: eles saem do Fundo Nacional de Saúde (FNS) e caem direto na conta do Fundo Municipal de Saúde (FMS), sem passar nem mesmo pelo governo estadual.
Com a “gestão plena”, é também a prefeitura quem administra e fiscaliza a aplicação desse dinheiro: é ela quem planeja quanto cada hospital receberá e para quê. E é ela, também, quem envia o relatório de execução dos serviços para o SUS. Assim (e mal comparando), se um prefeito ou o seu secretário de Saúde é ligado a algum hospital, é como colocar uma raposa para tomar conta de um galinheiro.
Mesmo assim, durante mais de um ano, de janeiro de 2021 a maio de 2022, Daniel Santos permaneceu como “sócio às claras” do Santa Maria, com a Prefeitura pagando e fiscalizando serviços do hospital ao SUS. Enquanto isso, outros hospitais da cidade passaram a sofrer, cada vez mais, com constantes atrasos de pagamentos. O primeiro a fechar as portas foi o Camilo Salgado, no bairro do Coqueiro, que Daniel desapropriou para inaugurar, segundo ele, “o primeiro hospital público” da cidade. A indenização de R$ 14 milhões pela desapropriação deveria ser totalmente paga em 2022. Mas um calote de R$ 4 milhões obrigou os ex-proprietários a entrarem na Justiça, em março deste ano. E como as parcelas da desapropriação foram sempre pagas com meses de atraso, isso acabou impedindo que o Camilo Salgado fosse reaberto em outro local, dizem os ex-proprietários.
Entre abril e maio deste ano, outros dois hospitais da cidade também informaram que são vítimas de constantes atrasos de pagamentos: o Hospital de Clínicas de Ananindeua (HCA) e o Anita Gerosa. Na época, o HCA chegou a suspender o atendimento aos pacientes do SUS, porque a dívida da Prefeitura já atingia cerca de R$ 7 milhões.
Metade dela por serviços realizados em 2021, o primeiro ano da administração de Daniel Santos, quando os atrasos de pagamento e as dificuldades do hospital teriam começado, disse um dos diretores do hospital. Segundo ele, ainda em janeiro de 2021, alegando “dificuldades financeiras”, a Prefeitura cortou 25% dos recursos destinados ao HCA. E isso apesar de ele ser o hospital que mais realiza atendimentos para o SUS, naquela cidade, disse o diretor.
Dívida era de quase R$ 4 milhões em abril
O outro que também se encontrava em situação aflitiva era o Anita Gerosa, hospital “Amigo da Criança”, que recebe incentivos da “Rede Cegonha” do SUS, para atendimento obstétrico e neonatal. No último mês de abril, a Prefeitura já devia ao hospital quase R$ 3,7 milhões, por serviços realizados no ano passado e de janeiro a março deste ano.
O portal da Transparência confirma a informação. Segundo o portal, em janeiro e fevereiro deste ano a Prefeitura não pagou nada ao hospital. E só de março a maio é que pagou os serviços do Anita Gerosa realizados em setembro, outubro, novembro e dezembro do ano passado. Apenas em junho começou a pagar os serviços deste ano, quitando o mês de janeiro. O último pagamento, em 6 de dezembro, como mostram as Notas Fiscais, quitou os serviços do mês de julho, que totalizaram cerca de R$ 650 mil.
Esses recursos incluem verbas do Rede Cegonha e para integração ao SUS e reestruturação de hospitais “filantrópicos” (sem fins lucrativos). Abrangem, ainda, exames, atendimentos ambulatoriais e internações. Foi com base nesse valor que o DIÁRIO calculou que a dívida da Prefeitura com o Anita Gerosa já alcança R$ 2,6 milhões, só neste segundo semestre, de serviços realizados em agosto, setembro, outubro e novembro. Mas a Prefeitura também ainda não repassou ao hospital o dinheiro do SUS para o pagamento do piso nacional de Enfermagem, de outubro, novembro, dezembro e 13º, que é de cerca de R$ 130 mil mensais. Assim, a dívida em relação ao piso já alcança uns R$ 520 mil. O que, somado a R$ 2,6 milhões, dá R$ 3,120 milhões.
A possibilidade de suspensão do atendimento da maternidade do Anita Gerosa gerou uma grande mobilização nas redes sociais, para impedir que isso aconteça. No Instagram, foi criado o perfil “salveanitagerosa”. Mas é difícil que o atendimento não acabe suspenso, caso continuem os constantes atrasos de pagamento. Um problema que, se pode ser fatal até para uma empresa, muito mais prejudicial se torna para um hospital sem fins lucrativos, sempre às voltas com a escassez de recursos. E o portal da Transparência mostra que esses atrasos já vêm desde 2022, pelo menos: só em 31 de janeiro de 2023, por exemplo, é que a Prefeitura pagou os serviços realizados pelo hospital em setembro de 2022. E só em dezembro de 2023 é que pagou os serviços de julho daquele ano.
O DIÁRIO tentou contato com a direção do Anita Gerosa, mas não obteve resposta. O hospital é mantido pela Sociedade Beneficente São Camilo e possui convênio com a Prefeitura, para recebimento dos recursos do SUS. Tem 64 leitos e atende as áreas de obstetrícia, clínica médica, serviços de diagnóstico ambulatorial e Unidade de Cuidados Intensivos (UCI). Ainda não se sabe se a Prefeitura possui dívidas para com o hospital de anos anteriores. Segundo o portal da Transparência, o Anita Gerosa recebeu da Prefeitura neste ano, até o último dia 21, R$ 9,357 milhões. Já o Hospital Santa Maria de Ananindeua, que foi do prefeito Daniel Santos, recebeu da Prefeitura, só neste ano, mais de R$ 19,554 milhões.
Texto de Ana Célia Pinheiro