Uma semana depois de ser ausência sentida na reabertura da Notre-Dame, em Paris, o papa Francisco celebrou missa na Notre-Dame-de-l’Assomption, na pequena Ajaccio, a capital da Córsega. Neste domingo (15), a população de 350 mil habitantes da ilha francesa no Mediterrâneo, acostumada a só crescer no verão, disparou em pleno inverno. Até Emmanuel Macron deu um jeito de aparecer por lá.
A escolha do pontífice rendeu longas discussões na França neste fim de semana. Por que Francisco abriu mão do momento de maior atenção da Igreja Católica no ano? A reabertura da catedral, recuperada com rigor histórico e estético após o incêndio de 2019, com ao menos 80 chefes de Estado e transmissão ao vivo para boa parte do planeta. Para depois participar de um congresso sobre piedade popular em local relativamente remoto do país?
O Vaticano explicou que Francisco tinha agenda já marcada com cardeais no último fim de semana. Uma mensagem sua foi lida na primeira missa regular na catedral parisiense, no domingo (8): “Que o renascimento desta admirável igreja constitua um sinal profético da renovação da Igreja na França”. Outro comunicado, mais eloquente, antecipava sua presença na Córsega, dias depois. Causou espécie a redação da nota, que conseguiu evitar a palavra “França”.
Francisco parece ter algumas diferenças com o país. No ano passado, pouco antes de uma visita de dois dias à Marselha, declarou que iria visitar a cidade, “não a França”. Em 2016, criticou a laicidade francesa, para ele “incompleta”. “Resulta às vezes demais da filosofia do Iluminismo, para a qual as religiões eram uma subcultura.”
Na mesma entrevista, a católicos franceses, ponderou que “a laicidade saudável compreende uma abertura a todas as formas de transcendência”. Neste domingo, voltou ao tema e defendeu um conceito de laicidade que não seja estático e rígido, mas “evolutivo e dinâmico”. Uma laicidade “capaz de se adaptar a situações diferentes ou imprevistas”.
O Estado laico é um dos pilares da República francesa, e Francisco o vê como uma necessidade nos dias atuais. Preocupa-se, porém, com “julgamentos ideológicos que às vezes ainda hoje opõem a cultura cristã e a cultura laica”, afirmou na Córsega.
Seu temor é que a piedade popular, a que fez parte de sua formação na América do Sul e à qual dedica boa parte de seu papado, possa ser instrumentalizada “por grupos que pretendem reforçar sua identidade de maneira polêmica, alimentando particularismos, oposições, atitudes de exclusão”. Uma evidente alusão a grupos e políticos de direita e extrema direita.
Em artigo no Le Monde, o teólogo François Euvé lembra que Francisco tem especial predileção pelo Mediterrâneo, “lugar de fronteira”, que reúne “várias temáticas que lhe são caras: as migrações, as relações entre as religiões –especialmente o islamismo–, as desigualdades sociais”. “Ao ‘centro’ (Notre-Dame de Paris), ele prefere as ‘periferias’.”
E se o papa não vai ao “centro”, ele veio ao seu encontro. Em uma manobra de última hora, Emmanuel Macron voou para Córsega e se encontrou com Francisco já no fim do dia, no aeroporto Napoleão Bonaparte, em Ajaccio –o imperador francês é filho ilustre da ilha. O presidente lhe trouxe um presente com sabor de recado, o livro oficial sobre a recuperação da Notre-Dame de Paris.
O catolicismo ainda é a maior religião da França, com 29% da população. Eram 85%, há meio século. Na “periferia”, como escreve Euvé, a Córsega registra 80% de devotos. As escolhas do papa seguem uma lógica.