Gustavo Cunha – Agência O Globo/Rio de Janeiro
Marco Nanini avisa que ainda está aprendendo a interpretar. Embora tenha mais de cem obras no currículo – e seja povoado por toda a sorte de tipos brasileiros -, o ator de 74 anos sente uma “tensão doida e sofrida” a cada novo trabalho. Sob a pele de um homem comum, desses que não fosse a fama passaria despercebido, o artista guarda um fascínio pela própria capacidade de ser muitos.
“Há muita gente dentro de mim. Penso nisso o tempo todo. E adoro viajar nessa ideia. Tenho total consciência de que a fantasia é eterna dentro de mim”, afirma o ator.
Parte dessa multidão é retratada no livro “O avesso do bordado”, escrito pela jornalista e roteirista Mariana Filgueiras, com lançamento neste 1º de fevereiro. Editada pela Companhia das Letras, a biografia segue a cartilha de obras do gênero: revisita a infância e acompanha o crescimento profissional do ator, rosto de sucessos no teatro, na TV e no cinema.
Condicionado a uma vida nômade devido à profissão do pai, gerente de hotéis de luxo – ele peregrinou por Recife, onde nasceu, João Pessoa, Salvador, Manaus e Belo Horizonte, antes de se fixar no Rio de Janeiro -, o pequeno Nanini era daqueles que não perdia a chance de tomar autógrafos de misses, figurões da sétima arte e presidentes (JK e Castelo Branco, entre eles), num caderninho conservado até hoje.
Nas páginas biográficas, estão intimidades pouco abordadas, como as primeiras grandes amizades (com nomes como Pedro Paulo Rangel e Ary Fontoura), os namoros – de Wolf Maya a Marília Pêra -, a cumplicidade inusitada com Renato Russo e a antiga dependência de Mandrix, sedativo que, associado ao álcool, causava um transe. Febre nos anos 1970 até ser proibida na década seguinte, a droga fez com que Nanini desmaiasse ao volante, o que o levou a abandonar o vício.
RETRAÍDO
Esses são pormenores que ajudam a construir o quadro de um artista complexo, que percebeu uma mudança significativa com o passar do tempo. Antes um jovem expansivo, Nanini se define hoje como um senhor retraído.
“Já me exponho tanto no palco. Para que ficar me exibindo? Quando era mais moço, me soltava, contava piada… De uns tempos pra cá, entendi que não era mais jovem. E aí falei: tenho que parar um pouco com essa infantilidade de brincar. Decidi sossegar um pouco”.
Num primeiro momento, a decisão de realizar uma biografia – e foi o próprio biografado quem escolheu e procurou a biógrafa – pode soar surpreendente. Não se trata de um aceno nostálgico, mas da afirmação de uma história que o ultrapassa.
“Há coisas que havia esquecido completamente, e lembrei com carinho. Mas o que passou, passou”, diz o ator, que está terminando de folhear as derradeiras páginas do livro. “Tornei-me também um leitor de mim. Tomara que possa me lembrar de mais tempos daqui pra frente”.
HOMOSSEXUALIDADE
A bem da verdade, a corajosa decisão de se expor já aconteceu outras vezes. Em 2011, Nanini revelou publicamente a homossexualidade. À época, interpretava Lineu, o popular patriarca de uma tradicional família brasileira, no seriado “A grande família”. Há 36 anos, é casado com o produtor Fernando Libonati. Os dois não pensam em filhos:
“Gosto de criança dos outros, com o pai e a mãe do lado. Comigo sozinho, vai cair da minha mão. Ficaria em pânico. Aí desisti disso, mas com muita certeza e segurança”.
Nando e Nanini, como são chamados pelos amigos, também são parceiros profissionais e vivem em casas vizinhas, com uma passagem entre os muros, na companhia de seis cachorros.
“Conheço tantos casais de todos os jeitos: mulheres e homens bissexuais, transexuais, pansexuais. Chegou uma hora em que falei: tenho que normalizar, para não ficar me escondendo”, recorda ele, que se espanta com o avanço do conservadorismo no país, inclusive entre colegas como Regina Duarte e Cássia Kis. “Não compreendo essas pessoas. Não é nem uma questão de política. É uma questão de moral. Nunca poderia acreditar que certas pessoas fossem tão conservadoras a ponto de não suportar a homossexualidade, o negro, o pobre. Fico assustado. Acho fascista. Não imaginaria nunca essa corrente forte. Tanto é que eu estou comprando um monte de livros sobre fascismo para entender como é que isso nasceu e cresceu”.
Mais esperançoso com os rumos da cultura no país, Nanini se anima ao comentar novos projetos, mas não demonstra empolgação semelhante ao falar de seus 75 anos, celebrados em maio.
“Não pretendo fazer nada. Já fiz muita festa. Acho que vou ficar quieto. No máximo, uma coisinha pequena, um jantar… Mas isso também dá muito trabalho”, diz ele, que abriu uma conta fake no Instagram só para espiar vídeos engraçados com crianças e bichos, algo que lhe serve de inspiração para o ofício artístico. “Os animais e as crianças fazem coisas tão irreverentes que absorvo um pouco essa energia deles. Mas não sei mexer em computador. É difícil, mas tento. Não sei nem o que é “stop” (ele se refere aos Stories, recurso de vídeos e fotos instantâneos do Instagram).
Briga com Marília Pêra perdurou até a morte da atriz
Foi com Marília Pêra que Marco Nanini realizou dois dos seus maiores sucessos. No teatro, ela o dirigiu em “Irma Vap”, peça na qual o ator contracenava com Ney Latorraca e consagrada no “Guinness” como o espetáculo que ficou mais tempo em cartaz com o mesmo elenco, de 1986 a 1997. Na TV, a dupla formou uma parceria impagável na novela “Brega & chique” (1987). E haveria um novo reencontro, se Marília tivesse aceitado o convite para interpretar Dona Nenê em “A grande família”, papel que depois coube a Marieta Severo.
De acordo com a biografia de Nanini, logo após o término “Irma Vap”, houve um desentendimento entre os dois, algo jamais superado. Ao ser perguntado sobre as memórias que cultiva acerca da atriz, que hoje completaria 80 anos, Nanini frisa:
“A gente foi muito amigo, a ponto de ter um caso rápido. Eram muitas afinidades. Mas em ‘Irma Vap’ houve um problema, e a gente rompeu. Ali foi o fim. Fiquei sentido, claro. Teve uma brigalhada danada. Mas é assim: na vida, tudo acaba”, afirma ele, que manteve o distanciamento até a morte de Marília, em 2015, e que hoje prefere não entrar em detalhes sobre o imbróglio. “Não ficou nada para resolver, porque falamos tudo. Dali em diante, não houve clima. Foi uma discussão fortíssima. A gente teve reunião com advogados. Foi tudo muito pesado, então foi definitivo mesmo. Mas continuo a admirando e tendo o prazer das lembranças de todos os encontros”.
Para Nanini, as relações de trabalho e amizade sempre se embaralharam. Ele se emociona ao lembrar do amigo Pedro Paulo Rangel, morto em dezembro, e com quem iniciou a carreira num grupo de teatro amador, na igreja de Santa Teresinha do Menino Jesus, no bairro carioca de Botafogo.
“Essa coisa de ir perdendo os amigos é difícil. Sinto que vai embora um pedaço de mim”, lamenta. “A finitude é uma surpresa. É um golpe. Fico me lembrando de tudo… Mas não com saudosismo. Até porque não tem jeito, né? Um dia termina a missa”.