Nelson Rodrigues já dizia: “O amor bem-sucedido não interessa a ninguém”. Essa sentença é especialmente verdadeira no cinema. Não há filme sobre amores já estabelecidos, em paz. Nossa atenção é capturada pelo conflito. Assim, há sempre corações partidos, a busca por uma nova paixão e as mais diversas provações. Mas tem um detalhe. Quando lidamos com esse mar revolto de sentimentos à base de risos e não de lágrimas, invariavelmente, a ponta solta é a imaturidade masculina ou, no caso de “A Dama de Vermelho”, a famosa crise de meia-idade dos homens.
Gene Wilder escreve, dirige e estrela esta comédia que completou quarenta anos em 2024, cujo plot, as artimanhas inventadas pelos maridos para trair as esposas, até soaria datado se a sua execução não fosse tão deliciosamente charmosa e boba – no melhor sentido da palavra. Mesmo que trate, essencialmente, da fixação pelo sexo, o tema é desenvolvido por meio de tons imaginativos, fantasiosos, e isso nos ajuda no processo fundamental de empatia com o protagonista. Além, é claro, do fato de ele ser um azarado completo, temer consequências e, por vezes, tentar reprimir comicamente seus desejos e impulsos.
De fato, essa história não é nova. Muito pelo contrário, tem dupla inspiração. Embora seja uma adaptação direta de um filme francês chamado “Pardon Mon Affaire (Un éléphant ça trompe énormément)”, de 1976, o filme de Wilder pode ser considerado uma grande homenagem ao clássico “O pecado mora ao lado” (1955), ao abordar a “coceira do casamento”, esse impulso em trair, mas também em utilizar a sua cena-chave, que aqui acaba sendo subvertida. Assim, de uma doce Marilyn Monroe parada em cima de um duto de ar e brincando ingenuamente com seu vestido branco esvoaçante, símbolo da sua pureza, passamos para uma sensualíssima Kelly LeBrock, com seu vestido fatal, vermelho, dançando de forma provocativa sobre um duto similar, levando Wilder, espectador solitário, ao começo da sua obsessão.
Pular ou não pular a cerca? Eis a questão!
Ele é Teddy, um cara casado, com filhos, todo certinho, e que tem aquele típico grupo de amigos “quinta série”. Mas Teddy sempre foi a voz da razão entre eles. Nunca foi influenciável. Até ver as pernas de LeBrock, ou melhor, de Charlotte. Elas abalaram as estruturas do seu mundo. Tudo agora se resumia a uma questão aparentemente muito simples: pular a cerca com a dama de vermelho. “Você é o seu sexo. Todo o seu corpo é um órgão sexual, com exceção talvez das clavículas”. A frase é do mestre Luís Fernando Veríssimo e retrata bem o que se passava na cabeça de Teddy.
As tentativas de encontrar/possuir esse objeto de desejo fazem o tom farsesco do filme emergir. São sequências hilárias em que Teddy se vê primeiro exultante para depois cair no desespero ou na frustração com seus planos naufragando. Por exemplo, quando ele tenta sair de casa furtivamente à noite, com a desculpa de ir ao trabalho após receber uma ligação do assistente, descobre casualmente que a esposa está ciente de que esse é um truque barato. Aí ele precisa abortar a missão. Até porque a esposa tem um revólver em casa, que dispara acidentalmente abrindo um buraco em uma de suas cuecas, além de ela, distraidamente, ficar apontando a arma para as suas partes mais íntimas.
Gene Wilder, a alma do filme
Tudo para Teddy é mais complicado. De um mal-entendido com a secretária a desencontros e encontros embaraçosos. São situações que, nas mãos de outro ator menos talentoso ou sem a vibe “antiquada” de Gene Wilder, poderiam resvalar numa atuação dissimulada ou mesmo caricata, que deturparia o efeito pretendido e nos tiraria a necessária suspensão de descrença. Wilder é preciso ao compor seu personagem, que anda por uma linha tênue entre a falta de ética e moral, mas se conserva adorável aos olhos do público. Coisa de gênio. E ele está muito bem acompanhado, diga-se, com destaque, entre os coadjuvantes, para Gilda Radner, como uma vingativa e rancorosa colega de trabalho.
O clima de “A Dama de Vermelho” é leve, de um prazer despretensioso e consciente do seu potencial limitado enquanto trama. É um filme propositalmente curto para que a piada não perca o fôlego, sendo importante dizer que Wilder não quis fazer um tratado sobre a infidelidade ou se aprofundar na discussão sobre relacionamentos. Apenas quis fazer rir. E consegue magistralmente, nos dando, neste processo, como bônus, novas referências e ícones da cultura pop, eternizando a imagem da própria Kelly LeBrock e, claro, a trilha sonora matadora de Stevie Wonder e Dionne Warwick, tendo seu ápice no hino “I Just Called to Say I Love You”. Precisa dizer mais?
Onde assistir
- “A Dama de Vermelho” está disponível para streaming no Amazon Prime Video e para aluguel ou compra na Apple TV.
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