Gustavo Cunha/Agência O Globo
Ary Fontoura gosta de abrir espaço nas prateleiras de sua casa. Vez ou outra, o ator reúne determinadas quinquilharias e revistas velhas das estantes – “e tudo vai para o saco”, como brinca. Aos 90 anos, completados nesta sexta-feira, o artista cultiva uma certeza clara, ideia que ele repete de variadas formas: a vida não deve ser somente um acúmulo do que passou.
“Quando se guarda muita coisa, chega um momento em que não há mais lugar para o novo. De repente, começo a amontoar objetos no chão… Aí já viu! Faço então uma limpeza total (risos). Isso é viver, né?”, diz. “Não dá para ser tão ‘conservador’. Tenho que acreditar que o futuro vem”.
Conhecido por personagens memoráveis na TV, no cinema e no teatro, o paranaense anda com a cabeça a mil. Leitor voraz (ele se debruça atualmente sobre “Um Conto de Duas Cidades”, de Charles Dickens), espectador das mais variadas séries no streaming (as tramas sul-coreanas o encantam), cinéfilo com uma coleção de mais de sete mil DVDs e amante da boa música (um sem-número de CDs ocupa suas paredes), Ary Fontoura é desses que perdem a hora à noite. Quando se dá conta, já são três da manhã – e lá está ele às voltas com uma revistinha de palavras-cruzadas.
“Às vezes, o dia vai embora, e eu não fiz metade do que gostaria”, afirma o ator, que roda, em breve, uma comédia do diretor Fred Mayrink para o Globoplay, aguarda o início da preparação para uma novela inédita (que ele não pode revelar detalhes) e não para de arrebanhar seguidores em redes sociais, com vídeos em que faz graça de si. “Quando me perguntam como vivo tão bem, não escondo que tenho uma série de métodos. Preocupo-me demais com exercícios físicos, por exemplo. Não dá para deixar tudo nas mãos de Deus”.
P – O senhor chega a 90 anos em plena atividade. Como é a sua rotina?
R – Sou uma pessoa simples, e não confundo as coisas. O trabalho não me serve de trampolim para me tornar besta. O sucesso é simplesmente uma decorrência das coisas que são feitas, assim como o fracasso também é, sobretudo nesta profissão em que preciso saber conviver com vaias e aplausos. Já entendo perfeitamente o meu ofício, e vejo que não há razão para me colocar numa posição superior a tudo e a todos. Vivo como um cidadão comum, que passa por aí, por todos os lados. Isso me agrada.
P – Está mais criterioso para aceitar papéis?
R – Trabalhei a minha vida inteira procurando emprego, e continuo fazendo isso para sobreviver. Essa é a minha luta. Mas sempre com um pensamento: a todo momento, estou voltado para o público. A única coisa que sei é que, nas redes sociais, as pessoas querem de mim o humor.
P – Seu perfil no Instagram – com 4,5 milhões de seguidores – se tornou um trabalho para o senhor. Imaginava isso?
R – Modéstia à parte, cheguei a um ponto em que é difícil sair de casa. Existem pessoas mais jovens, que não me viram nas novelas, que dizem: “Ah, você é famoso porque está na internet.” Os vídeos que posto me dão um trabalho danado. E toda a graça pela qual eu batalhei, ao longo da carreira, está tendo sua compensação agora.
P – Como assim?
R – Não consigo ir muito na rua, sabe? Se vou a um shopping, tenho que contar com o tempo a mais para atender as pessoas. Às vezes, tenho pressa porque posso estar com uma dor de dente danada, com horário marcado no dentista, e há gente ávida para me conhecer, tirar foto, conversar comigo.
P – O que acha do novo mundo inaugurado pela internet?
R – É perigoso falar sobre isso, porque dá a impressão de que sou quadradão, careta e que não admito o progresso. Não é isso. Mas acho que para tudo há regras. Na internet, tudo se altera minuto a minuto, já que as notícias vêm enquanto acontecem. Isso endurece a gente. Tenho certo medo. É um turbilhão que vai vindo. Parece um rio que vai crescendo, crescendo, e de repente a gente afunda. É como se todos estivessem apressando demais os fatos e tirando o lado romântico das coisas, algo importante.
P – Sente que isso tudo afeta as novas gerações de artistas?
R – Todos estão impulsionados a perder a paciência e querer tudo logo. Procuro mostrar que, com alegria, dá para tornar a vida mais leve. E que não basta só abrir um computador. Hoje, todo mundo quer viver muito, mas tem pressa. Isso traz certa preguiça. As mensagens que recebo no Instagram parecem escritas em japonês. Não se entende nada do que as pessoas dizem, de tão resumidos que são os recados. Todos querem dizer tanto, né? Pena que são apressados.
P – Há um debate acerca da escalação de influenciadores digitais para novelas, no lugar de atores profissionais. Acompanha essa discussão?
R – Todos têm o direito de ocupar um lugar ao sol. Mas a capacidade deve estar em primeiro plano. Não é justo que alguém que estudou seja de repente substituído por uma pessoa que simplesmente abriu uma página na internet. O talento deve vir em primeiro lugar. Mas não sou contra um “influencer”, para usar uma dessas palavras estrangeiras (risos).
P – É saudosista?
R – Sempre consulto as coisas do passado que me servem de utilidade. Mas tenho uma norma: aquilo que é desagradável fica só na memória. Não se anda para trás. É para frente que se vai, e com certo cuidado. As pessoas me perguntam como é a vida para mim. E eu digo: acho muita pretensão programar o dia de amanhã, porque não se sabe o que vai acontecer. O futuro é hoje. É cada dia que se vive, cada minuto, cada segundo. Por isso, aproveito da melhor maneira possível.
P – Há um segredo para chegar aos 90 anos com saúde e lucidez?
R – Devo isso a uma certa questão genética. Meu irmão está com 96 anos e minha irmã, 98. Mamãe faleceu com quase 100. Com esse histórico todo, penso que estou enquadrado aí, né? E sou cuidadoso. Não custa nada fazer umas caminhadas.
P – A decisão de não ter filhos já foi uma questão?
R – Quando vi que minha profissão seria difícil, abdiquei de tudo. Disse: serei muito egoísta nesse sentido. E fui. Não me arrependo, não. Dizia assim: “Meu Deus do céu, viver de arte e teatro nesse país vai ser uma loucura e onde vou armar essa barraca com uma família?” Uma pessoa já é problema sério.
P – As pessoas costumam associar velhice à solidão…
R – A solidão não é tão natural quando vejo as pessoas próximas indo embora e percebo que não há mais tempo de recuperar certas coisas. Aí é a hora de conversar muito comigo mesmo e ser realista. Fico pensando: como achar a solução? Não dá para ficar com essa pergunta todo dia. Acho melhor deixar o tempo correr, e estar sempre prevenido, porque de repente o fim pode ser amanhã. Não é fácil viver com a idade que tenho. Mas não considero isso um assunto de primeiríssima ordem, porque senão fico deprimido. Deixo a vida ao sabor dos dias que virão.
P – Pretende celebrar o aniversário?
R – Vou fazer uma reunião com amigos em casa. Sou uma pessoa que gosta de viver. E procuro ser realista com essas coisas todas acerca da passagem do tempo e da finitude. Sou essencialmente romântico. De outra forma, a vida não teria graça. Acho que perder a medida não vale. Destruir o conquistado, menos ainda. E substituir o que já se definiu como bom por algo hipotético também seria muito complicado a essa altura.
P – O que pensa da situação política do país e da maneira como a Cultura é tratada?
R – Uma barbaridade. Costumo dizer que um povo culto e saudável faz uma nação. E mais: não existe nenhum regime que me agrade tanto quanto o democrático.
P – Alguns de seus colegas se tornaram aliados do conservadorismo. Como reage?
R – Conheço essas pessoas todas. Naturalmente, fico apavorado com esse tipo de coisa. Mas cada um tem o direito de ser como acha que deve. Acho o seguinte: se você pensa de uma forma, arque então com as consequências. Não é assim? Minha maneira de pensar é outra. Respeito tudo e todos, e batalho por isso. Acho que a Cultura é importante para o país. Falta diálogo no mundo. E só com diálogo se chega à razão.