Mônica Bergamo e Vinicius Sassine/Folhapress
O STF (Supremo Tribunal Federal) já dispõe de informações que indicam que o descumprimento de decisões da corte pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) agravou a crise humanitária vivida pelos yanomamis.
As evidências põem em xeque a defesa apresentada pelo ex-presidente na última semana. Por meio de uma rede social, Bolsonaro afirmou que a saúde indígena foi uma das prioridades de seu governo e que as críticas feitas a ele seriam “mais uma farsa da esquerda”.
Desde 2020, a corte superior proferiu diversas decisões em prol dos povos originários -muitas delas, ordenando providências por parte do governo e de órgãos federais. As determinações foram tomadas no âmbito de uma ação relatada pelo ministro Luís Roberto Barroso e chanceladas pelo plenário do STF.
O próprio magistrado chegou a tratar do tema, em diversos momentos, com os então ministros Marcelo Queiroga (Saúde) e Walter Braga Netto (Defesa) e com o então advogado-geral da União, Bruno Bianco. Todos asseguraram a Barroso estar empenhados na adoção de políticas públicas.
Embora a gestão do ex-mandatário tenha dito que realizou ações de saúde e de vigilância alimentar e nutricional junto ao povo yanomami, informações reunidas pelo STF apontam que as medidas não seguiram o planejamento aprovado e foram, sobretudo, deficitárias.
Região com 30 mil habitantes em Roraima, a Terra Indígena Yanomami vive uma explosão de casos de malária, incidência de verminoses facilmente evitáveis, infecções respiratórias e agravamento da desnutrição, especialmente entre crianças e idosos.
O quadro de desassistência em saúde no território é agravado pela permanência de mais de 20 mil garimpeiros invasores na área demarcada.
Na semana passada, o Ministério da Saúde decretou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional. Três dias depois, enviou uma equipe da Força Nacional do SUS (Sistema Único de Saúde) para Boa Vista com 12 profissionais.
Na terça-feira (24), representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se reuniram com a equipe do ministro Luís Roberto Barroso, para cobrar a retirada de garimpeiros ilegais no território yanomami.
Além da retirada de invasores, eles pediram a liberação de verbas extraordinárias para garantir a realização das operações na terra indígena.
LATAS DE SARDINHA
Sem peixes para pescar, em razão da contaminação agressiva de rios por garimpeiros de ouro, famílias yanomamis estão recebendo doações de latas de sardinha como alternativa ao alimento tradicional.
As latas de sardinha -presentes em pequenos fardos de comida que incluem pacotes de arroz, de farinha e de sal- são despejadas pelo ar, sem pouso da aeronave da FAB (Força Aérea Brasileira) na curta pista do PEF (Pelotão Especial de Fronteira) Surucucu, do Exército.
Na tarde desta quinta-feira (26), a reportagem embarcou no cargueiro KC-390 da FAB e acompanhou o socorro emergencial aos indígenas da terra yanomami, vítimas de uma crise sanitária e de saúde pública que resultou na explosão dos casos de desnutrição grave, de doenças oportunistas da forme como diarreia e pneumonia e de malária.
O governo Jair Bolsonaro (PL) viu a crise escalar e atingir o ápice em 2022, o ano em que mais de 20 mil invasores intensificaram o garimpo ilegal e consolidaram o avanço dos pontos de exploração rumo a áreas de aldeias antes distantes dos garimpeiros, com a conivência do governo.
Também no ano passado houve uma crise no fornecimento de medicamentos básicos aos indígenas, como vermífugos para as crianças, com suspeita de fraude e corrupção no contrato assinado pela gestão Bolsonaro.
Os yanomamis pelas lentes de Sebastião Salgado O governo Lula (PT) declarou estado de emergência em saúde pública no último dia 20 e criou um comitê de coordenação para enfrentamento à desassistência sanitária na terra yanomami.
A Força Nacional do SUS foi convocada pelo Ministério da Saúde para atuar no atendimento e diagnóstico de pacientes com desnutrição grave e malária. Hospitais de campanha estão sendo preparados.
Uma ação em curso é a arrecadação e distribuição de alimentos por Exército e Aeronáutica.
Desde segunda-feira (23), o KC-390 da FAB faz sobrevoos na região de Surucucu, uma das mais afetadas na crise, com explosão de casos de desnutrição e malária, e arremessa pelo ar cargas com alimentos destinadas aos yanomamis.
A carga cai na pista de pouso do PEF com paraquedas, num processo que é automatizado do início ao fim. Os alimentos são acondicionados em tambores e em grandes blocos, para então serem arremessados por uma abertura traseira do KC-390.
A Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) coordena a distribuição dos fardos de alimentos às aldeias. Nesta quinta, foram arremessadas oito toneladas de alimentos, num total de 320 cestas básicas.
A aeronave decola da Base Aérea de Boa Vista e leva 40 minutos para chegar à altura da pista de pouso do PEF Surucucu, numa velocidade que oscila de 350 a 700 km/h.
Trinta minutos após a decolagem, é possível ver pela janela do cargueiro um rio serpentear a vegetação amazônica com uma água barrenta, produto da exploração de garimpos de ouro.
Também é possível visualizar pela janela, no mesmo trecho, uma pista de pouso clandestina usada por garimpeiros. Como essa, há dezenas de outras na terra yanomami.
A transformação do rio em uma massa viscosa e barrenta impede qualquer atividade de pesca.
Profissionais de saúde acostumados a atender yanomamis severamente desnutridos dizem que esses indígenas perderam o peixe em suas dietas, assim como a farinha, a mandioca e outros alimentos nutritivos, como a batata.
Aldeias inteiras são cooptadas pelo garimpo, e plantações desaparecem nessas comunidades. Falta ainda água potável.
Os fardos com alimentos arremessados pela FAB incluem latas de “sardinha ao próprio suco com óleo comestível”.
O procurador da República Alisson Marugal, que atua em inquéritos relacionados à desassistência aos yanomamis, afirma que em 2020 houve “um primeiro aviso”, um primeiro sinal, sobre a falta de sensibilidade do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro em relação à desnutrição dos indígenas.
A alimentação fornecida aos indígenas nos postos de saúde foi interrompida, “de maneira incompreensível”, segundo o representante do MPF (Ministério Público Federal) em Roraima.
“Isso fez com que muitos indígenas deixassem de procurar o posto de saúde ou desistissem do tratamento”, diz.
O MPF recomendou que a Sesai (Secretaria de Saúde Indígena), vinculada ao ministério, retomasse o fornecimento de alimentos, principalmente para crianças e idosos desnutridos. A Sesai argumentou não ser responsável por segurança alimentar, e a Procuradoria ingressou com ação na Justiça para garantir o fornecimento desses alimentos. Houve decisão favorável.
“Faltaram compreensão e sensibilidade com os yanomamis”, afirma o procurador.
Naquele momento, o garimpo já avançava na terra indígena, sem oposição de Bolsonaro e de seu entorno. Apenas operações esporádicas de órgãos como PF (Polícia Federal) e Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) foram realizadas para destruição de maquinário.
Em 2022, a crise sanitária e de saúde escalou, e profissionais de saúde que se depararam com casos de desnutrição grave notaram uma ausência de alimentos tradicionais na dieta dos yanomamis, como o peixe.
Com a declaração de emergência, e a necessidade de ação emergencial para estancar a fome, latas de sardinha foram distribuídas por ar às comunidades mais afetadas pela crise em curso.