ENEM-2024

Em 1º dia sem sustos, Enem se volta a questões raciais e herança africana

Antes do início do exame, o ministro da Educação, Camilo Santana, afirmou que não houve ocorrências graves na entrega das provas nem atrasos.

prova do primeiro dia do Enem 2024 teve questões com música dos Racionais e de Adoniran Barbosa, além de abordar o filme “A Culpa é das Estrelas” e a série “Game of Thrones”.
prova do primeiro dia do Enem 2024 teve questões com música dos Racionais e de Adoniran Barbosa, além de abordar o filme “A Culpa é das Estrelas” e a série “Game of Thrones”. Foto: Agência Brasil

A prova do primeiro dia do Enem 2024 teve questões com música dos Racionais e de Adoniran Barbosa, além de abordar o filme “A Culpa é das Estrelas” e a série “Game of Thrones”. Neste domingo (3), os candidatos fizeram as provas de linguagens e ciências humanas, com 90 questões, e a redação, cujo tema foi “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”.

Antes do início do exame, o ministro da Educação, Camilo Santana, afirmou que não houve ocorrências graves na entrega das provas nem atrasos. Além disso, ele atribuiu o aumento do número de inscritos neste ano 4,32 milhões, 9,95% em relação a 2023 ao programa Pé-de-Meia, de fornecimento de bolsas para alunos do ensino médio.

Segundo professores de cursinho que efetuaram a prova, todo o exame foi permeado pela temática racial e étnica. Uma das questões, por exemplo, tratou dos influenciadores negros, abordando a música “Capítulo 4, versículo 3”, dos Racionais.

“Assim como no ano passado o grande tema abordado pela prova foi o papel da mulher, neste ano o exame foi permeado pela questão racial. Várias perguntas abordaram o abolicionismo, os povos quilombolas, o racismo”, disse Guilherme Freitas, professor de história da Escola SEB Lafaiete.

Uma das perguntas tratou do movimento Black Lives Matter (vidas negras importam) nos Estados Unidos.

Rodrigo Basilio, professor de história e fundador do Dissecando Educação, avalia que o Enem deste ano privilegiou questões que reforçam a diversidade cultural brasileira e a ideia de resistência aos autoritarismos, tratando de temas como os movimentos abolicionista, o das Mães da Praça de Maio, quilombolas, refugiados e a luta por igualdade de gênero.

“A prova exigiu dos candidatos uma leitura atenta para interpretação de diferentes tipos de textos e temáticas: o candidato deveria ser capaz de pensar criticamente desde a valsa vienense até as novelas brasileiras”, diz Basilio.

Uma das questões tratou do ‘soft power’ brasileiros com as novelas produzidas no país. O enunciado falava sobre a influência de Escrava Isaura, na Rússia, e de Roque Santeiro, em Angola.

Luiz Otávio Ciurcio Neto, coordenador do Poliedro, destacou que a prova acertadamente trouxe muitos textos com referência à cultura pop, o que traz identificação com o candidato. Mas sem deixar de lado textos e referências históricas importantes.

A prova citou, por exemplo, trechos de música da cantora Alicia Keys e de Caetano Veloso, mas também fez referência aos filósofos Deleuze e Guattari, Foucault e Jürgen Habermas.

“A cultura pop surgiu em textos presentes tanto nas questões de linguagem como em humanidades, assim como textos literários de autores dos séculos 19 e 20. A prova ainda incluiu questões sobre movimentos sociais contemporâneos, como o Black Lives Matter, e uma análise de um trecho da Constituição de 1988 sobre cidadania”, afirmou ele.

Camila Feitosa, professora de história do Elite Rede de Ensino, considerou que a prova teve um caráter interpretativo e com assuntos recorrentes de anos anteriores. “Questões como patrimônio, valorização de direitos humanos, Constituições e o progressivo crescimento dos direitos no Brasil, Vargas e Primeira República estiveram presentes.”

Pedro Rennó, professor de história da Plataforma Professor Ferretto, , elogiou a estrutura da prova por articular episódios históricos com situações contemporâneas, além de tratar das questões de forma interdisciplinar.

“Em uma pergunta, o exame consegue pegar tanto história quanto sociologia, porque trabalha a Constituição de 88, mas fala de história dos remanescentes dos quilombos, então aí você já pode também ter a questão do vidas negras importam, que aconteceu no começo da pandemia, nos Estados Unidos. E isso tem reflexão no mundo inteiro.”

Lígia Albuquerque, professora de filosofia e sociologia do Elite Rede de Ensino, destacou uma das questões que abordou o rompimento da barragem em Mariana, Minas Gerais. “A pergunta fazia uma reflexão sobre outras perdas provocadas pelo acidente, além das materiais.”

Segundo os professores, as mudanças climáticas e os problemas ambientais também estiveram fortemente presentes na prova. Em geografia, por exemplo, uma das perguntas tratou de alagamentos. Outra abordava a responsabilidade e o papel que o Brasil pode ter para conter a destruição ambiental dentro do contexto da COP que será realizada no Pará no próximo ano.

Vinicius Teixeira, professor de literatura do Colégio Oficina do Estudante, também destacou que a prova de linguagens conseguiu mesclar autores tradicionais (como Machado de Assis e José de Alencar) com personalidades contemporâneas, como Rita Lee.

“Isso confere à prova um caráter bastante contemporâneo e exigia dos alunos uma capacidade de verificação de leitura e articulação com uma perspectiva social”, diz.

REDAÇÃO: VALORIZAÇÃO DA HERANÇA AFRICANA

Professores elogiaram a escolha do tema da redação do Enem por ser um assunto de extrema relevância social.

“Com certeza o aluno vai pensar em aspectos relacionados ao racismo porque esse é um grande problema que a gente vive na sociedade brasileira e um desafio que impede a valorização da cultura africana e dessa herança”, disse Isabela Canella, professora de redação da Escola SEB Lafaiete.

Roberta Panza, professora de redação do Descomplica, afirmou que o tema proposto na redação não falava apenas sobre racismo, mas avançava na reflexão pedindo que o candidato abordasse a dificuldade que a sociedade enfrenta de valorizar a herança africana no Brasil.

“É pensar o quanto temos uma memória ancestral que segue sendo invisibilizada e desvalorizada tanto pelo corpo social quanto pela educação, que muitas vezes ignora a importância do ensino de literatura e cultura. Ou, também, que coloca essa valorização em momentos específicos do ano, como em novembro, mês da Consciência Negra.”